A falta de dados sobre os resultados obtidos nos chamados autotestes de Covid-19 pode estar mascarando o real número de novas contaminações no Brasil.
O alerta está sendo feito por especialistas em saúde pública, que apontam que o número de novas infecções pelo coronavírus parece estar em níveis muito maiores atualmente do que apontam as estatísticas nacionais.
Essa suposta defasagem nos dados pode representar um risco para o trabalho de planejamento de gestores de saúde; além disso, pode estar levando a população a ter uma visão incompleta sobre o momento da pandemia.
Boletim epidemiológico sobre as estatísticas da Covid-19
De acordo com o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde (MS) aponta aumento de 12% no número de casos no Brasil na segunda semana de maio (123.564 casos) ante a primeira semana.
O boletim também aponta aumento de 19% no total de mortes no período: foram 746 mortes na segunda semana.
Os dados nacionais compilados pelo consórcio de veículos de imprensa também têm apontado alta nos números.
Contudo, apesar dos aumentos, os dados seguem muito mais baixos do que os do pico registrados em janeiro e início de fevereiro.
O ministério e o consórcio se baseiam em dados das secretarias estaduais de Saúde – que computam os casos informados obrigatoriamente pelos laboratórios, hospitais e farmácias.
Subnotificação atrapalha as estatísticas da covid-19
O problema da nova realidade dos autotestes para as estatísticas é que as pessoas que usam em casa os kits de diagnóstico não são obrigadas a informar os resultados às secretarias de saúde.
E ainda que as estatísticas apontem alguma alta, parecem oferecer um quadro menos preocupante do que o descrito por especialistas.
“O aumento do número de casos é algo absolutamente indiscutível. Você pergunta para qualquer um na prática clínica e todos estão vendo muito mais casos esses dias. Felizmente, casos mais leves, mas com facílima transmissão”, diz a infectologista do Hospital Emílio Ribas, de São Paulo, Rosana Richtmann.
“E por que os números não estão batendo? Por subnotificação. Claro que o autoteste ajudou demais em termos de você ter facilidade de detectar se está com covid, no entanto, a subnotificação aumentou demais. A pessoa vê que o resultado positivo e isso não é notificado. Tem inúmeros casos assim. Os números oficiais de casos não correspondem aos números que estamos vendo”.
Autotestes
Já o pesquisador em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenador do InfoGripe, Marcelo Gomes, plataforma da instituição que acompanha a evolução de síndromes respiratórias, entre elas Covid-19, acrescenta:
“A questão dos autotestes acaba gerando um viés nos dados oficiais. Embora haja a recomendação que as pessoas que tenham resultado positivo nesse tipo de exame busque atendimento para cuidados e notificação, é difícil esperar que a maioria das pessoas de fato façam isso, especialmente em casos leves. E aí os dados acabam ficando mascarados”.
Gomes enfatiza a importância dos autotestes, como uma ferramenta prática para detecção em casa de casos de Covid-19. O problema é o que tem sido feito com os resultados.
“Os autotestes têm um papel importante para as ações individuais, no sentido de auto-isolamento e quarentena, por exemplo, mas têm também um impacto no acompanhamento dos dados oficiais.”
Aumentos dos casos
O médico sanitarista, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gonzalo Vecina Neto, reforça a percepção de aumento dos casos.
Está havendo aumento de número de casos, sem sombra de dúvida”, afirmou ele. “Está havendo recrudescimento do que esperávamos ser uma fase endêmica.”
Na opinião do infectologista do hospital Sírio-Libanês, de São Paulo, Miriam Dal Ben, há uma percepção generalizada na comunidade médica de que os autotestes acentuaram a subnotificação de casos de Covid-19 no país.
“Temos observado um aumento nos prontos socorros e procura grande de pacientes no consultório após terem tido autoteste positivo”, diz ela.
A médica, no entanto, lembra que uma grande parte da população que detecta que está com covid por meio do autoteste prefere se resguardar e se isolar em casa e acaba não indo para um serviço de saúde para confirmar o resultado (que é a recomendação feita nas bulas dos autotestes; quando as pessoas vão aos serviços de saúde e os resultados são confirmados, eles passam a entrar nas estatísticas). “Às vezes [após o positivo no autoteste, às pessoas optam por não ir ao serviço de saúde] porque é mesmo difícil sair de casa, outras vezes porque o convênio tem burocracia para aprovar a realização do teste”.
Para ela, o Brasil poderia adotar um método mais prático de informação dos resultados dos autotestes ao poder público. “Na Inglaterra, por exemplo, há um método reportar para o governo por meio de um QR Code. E a gente não tem esse mecanismo aqui.”
Miriam, no entanto, acrescenta uma avaliação nesse cenário atual da pandemia.
“Por enquanto não há nenhuma variante nova que escapa da vacinação. Não devemos ter uma onda com tamanhas internações e mortalidade como tivemos com a delta e gama”, concluiu.
Dúvidas sobre as estatísticas da Covid-19
A Anvisa aprovou em fevereiro o primeiro autoteste no país. Hoje são 31 com aval da agência para serem comercializados. São kits fabricados no Brasil, China, Coreia do Sul, Alemanha, EUA e França.
Apesar da percepção de especialistas de que o uso dos autotestes têm se difundido rapidamente no país, a reportagem não encontrou um dado que aponte quantas unidades desses dispositivos já foram vendidos por aqui.
A Câmara Brasileira de Diagnóstico Laboratorial (CBDL) e a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) montaram o site meuautoteste.com.br/ para registrar os resultados positivos e negativos – daqueles clientes que decidem partilhar seus diagnósticos.
De acordo com Carlos Eduardo Gouvêa, presidente executivo da CBDL, mais de 6.000 pessoas por semana estão acessando os aplicativos das empresas para reportar os dados – não está claro, no entanto, quantas pessoas têm comprado por semana os autotestes.
Site
Quem compra um autoteste não tem obrigação de acessar o aplicativo. E mesmo entre as que acessam o aplicativo. E mesmo entre as que acessam o aplicativo, apenas entre 45% a 50% completam todas as etapas de envio de dados, ressalvou, portanto, Gouvêa.
O site das duas instituições pode fornecer uma visão sobre os diagnósticos, mas não alimenta as estatísticas oficiais – os resultados só aparecerão se os clientes de autotestes confirmarem o diagnóstico em serviços de saúde.
E um dos problemas de os resultados colhidos nos autotestes não aparecerem em sua integralidade nas estatísticas é o risco para o planejamento dos gestores de saúde.
“Se você não sabe direito [número de testes positivos e, com isso de casos] você não sabe o que fazer, como programar [política pública de atendimento]. Assim, estamos hoje esperando hospitais ficarem lotados para tomar alguma medida”, afirma o professor da Universidade de São Paulo (USP) de bioquímica e farmacêutica e membro da Academia de Ciências Farmacêuticas do Brasil, Marco Antonio Stephano.
Hospitalização
O epidemiologista com pós-doutorado em Epidemiologia pela Johns Hopkins University, Ethel Maciel, concorda com essa avaliação.
Na avaliação da especialista, em relação aos números da pandemia até o momento, a sinalização é de que se perdeu um período de “aviso” com antecedência, às autoridades sanitárias, a uma posterior elevação de hospitalizados por Covid-19.
“Começamos a ver aumento de internação [pela doença], principalmente UTI pediátrica, que não conseguimos antecipar adequadamente”, frisou. Ela explicou que, no passado, havia uma espécie de “sequência”: aumento de número de testes positivos, ou seja, de casos; aumento de internações; e aumento de óbitos. “Perdemos isso [essa sequência]”, ressaltou.
“A dificuldade, quando se tem uma subnotificação, é que não se tem indicadores mais próximos da realidade para saber o que acontece”, completou, notando que, com isso, a autoridade sanitária não pode saber com antecedência quando pedir mais leitos, mais medicamentos, para tratamento na pandemia.
Fonte: Valor Econômico
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