Por muitos anos, o farmacêutico ficou escondido atrás do balcão, apenas dispensando medicamentos e lidando com procedimentos burocráticos exigidos pelas regulações sanitárias. Foi preciso a criação da Lei Federal 13.021, aprovada em 2014, para que a profissão retomasse a devida importância e destaque dentro do sistema de saúde.
Enquanto o farmacêutico recebeu respaldo legal para assumir responsabilidades clínicas, as farmácias deixaram de ser apenas estabelecimentos comerciais e passaram a ser consideradas prestadoras de serviços de saúde.
Junto ao empoderamento dado à categoria, termos ligados ao universo farmacêutico ganharam força dentro das discussões sobre os novos papéis da profissão, entre eles: Farmácia Clínica.
De acordo com a assessora técnica do Conselho Regional de Farmácia de São Paulo (CRF-SP), Dra. Amouni Mourad, trata-se de uma ciência da saúde, cuja responsabilidade é assegurar, mediante a aplicação de conhecimentos e funções relacionadas com o cuidado dos pacientes, que o uso dos medicamentos seja seguro e apropriado.
“Farmácia Clínica é o trabalho do farmacêutico voltado para áreas que exigem uma orientação sobre o uso de medicamentos, quando há contato direto com o público ou não. Requer que a coleta e interpretação de dados sejam criteriosas, que exista motivação pelo paciente e que existam interações interprofissionais”, detalha a especialista.
Todas as atribuições clínicas do farmacêutico já eram regulamentadas pela Resolução 585/13 do Conselho Federal de Farmácia (CFF), que estabelece que as ações desse profissional devem visar à promoção, proteção e recuperação da saúde, além da prevenção de doenças e de outros problemas de saúde, de forma a promover o uso racional de medicamentos e otimizar a farmacoterapia, com o propósito de alcançar resultados definidos que melhorem a qualidade de vida do paciente.
No entanto, apenas a partir da regulamentação da Lei Federal 13.021/14 ficou claro como a prestação de assistência farmacêutica deveria ocorrer na prática dentro das farmácias.
Com a regulamentação mais clara, o número de farmácias que contam com salas de serviços farmacêuticos quase triplicou nos últimos 12 meses, saltando de 605 para 1.670 – um avanço de 176% –, segundo a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma).
A projeção da entidade é chegar a 2.100 espaços do gênero, operando programas de assistência farmacêutica avançada até o fim de 2018. Mantendo esse ritmo, esses espaços realizarão, no fim do ano, 2,6 milhões de atendimentos contra 1,4 milhão registrado em 2017.
O que diz a lei?
Os gestores interessados em contar com espaço dedicado à prestação de serviços farmacêuticos devem ficar atentos aos parâmetros e às exigências técnicas que a farmácia precisa atender para poder contar com uma clínica dentro do estabelecimento.
Antes de qualquer investimento, o local deve ter os serviços farmacêuticos registrados na autorização de funcionamento junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e ao órgão de Vigilância Sanitária Local. Para o serviço de vacinação especificamente, a farmácia também precisa constar no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES).
Os serviços de assistência farmacêutica devem ser prestados em um espaço físico diferenciado, que garanta conforto e privacidade para o paciente. Conforme previsto no parágrafo 1º do artigo 15 da Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 44/09 da Anvisa: “O ambiente deve ser diverso daquele destinado à dispensação e à circulação de pessoas em geral. A prestação dos serviços demanda atendimento individualizado e deve garantir a privacidade e o conforto dos usuários, possuindo dimensões, mobiliário e infraestrutura compatíveis com as atividades e serviços a ser oferecidos”.
Papel do farmacêutico
O acesso à saúde no Brasil já sofre com falta de estrutura e o quadro pode se agravar à medida que o número de idosos crescer, como preveem as projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Quanto mais velha a população, maior a prevalência de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, hipertensão e problemas cardíacos.
“Há uma estimativa de que as necessidades de assistência à saúde vão aumentar. É fundamental que os profissionais da saúde sejam cada vez mais treinados para essa realidade. A assistência voltada ao idoso deveria ser parte do ensino. Não temos como formar um exército de especialistas, mas precisamos ter profissionais preparados para atender às peculiaridades e individualidades das pessoas com mais de 60 anos de idade”, analisa o médico geriatra e diretor científico da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), Dr. Renato Bandeira de Mello.
Dentro da necessidade de reforços na estrutura do sistema saúde, os farmacêuticos aparecem como peça importante de apoio a um atendimento integrado. Consultas primárias feitas em Farmácias Clínicas podem servir como ferramenta de prevenção e de detecção de doenças ainda em fase inicial.
“As triagens são importantes e podem ser feitas nos mais diversos cenários. Atenção primária estrategicamente posicionada como nas farmácias tem o seu valor. Isso tem de estar engrenado, de preferência, com um atendimento multiprofissional, para entregar o melhor cuidado aos pacientes mais velhos”, opina o Dr. Mello.
Ainda na área de assistência farmacêutica, a prática da farmacologia ganha muita importância quando se tratam de cuidados à terceira idade. “O idoso, em virtude de várias alterações fisiológicas e patológicas relacionadas ao envelhecimento, tem alteração importante na farmacocinética e farmacodinâmica. Isso leva a respostas de tratamento diferentes e maiores riscos de reações adversas, além disso, nessa faixa etária, os riscos de interação medicamentosa são maiores, devido ao uso de polifarmácia. O profissional precisa estar preparado para entender essas peculiaridades”, completa o Dr. Mello.
Após pensar nas questões regulatórias e estruturais, o gestor precisa elaborar um plano de negócios para os serviços, incluindo as estratégias para capacitação de pessoas, precificação, marketing, indicadores e metas.
De acordo com o farmacêutico, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do Programa Assistência Farmacêutica Avançada da Abrafarma, Cassyano J. Correr, os serviços farmacêuticos devem ser vistos como uma nova unidade de negócios da empresa.
Ou seja, devem ser precificados e cobrados, pois oferecer esse tipo de atendimento representa aumento de custos para a empresa. “A melhor forma é cobrar pelos serviços diretamente dos clientes e converter parte disso em remuneração ao farmacêutico. Há mercado para isso”, afirma Correr, que espera que o desenvolvimento desse mercado vá atrair outros potenciais pagadores, como governos e planos de saúde.
Com a prestação dos serviços, a farmácia passa a ter uma receita sobre os serviços praticados e ganha mais um diferencial para fidelizar melhor os clientes. É a combinação ideal para aumentar a frequência de visitas, elevar o tíquete médio e, consequentemente, ampliar o faturamento.
“Por isso, é importante ver os serviços como uma nova unidade de negócio e trabalhar seriamente em um plano de implementação. A precificação deve ser bem planejada, pois não há margem na venda de produtos para cobrir os investimentos nos serviços. Esse sempre foi o dilema do varejo, pois oferecer serviços representa aumento de custos para a empresa”, reflete Correr.
Obstáculos e entraves
Apesar de já estar em funcionamento em um bom número de estabelecimentos, o sistema de Farmácia Clínica só se tornará uma realidade consolidada, incorporada em todo o varejo farmacêutico, se alguns entraves forem superados.
A implantação desse modelo de assistência farmacêutica exige uma mudança de cultura, tanto do setor quanto da população. “O grande desafio está fundamentalmente em transportar os conceitos e ferramentas teóricas para o dia a dia do profissional, passando pela mudança cultural dos próprios farmacêuticos, pela valorização da profissão perante a sociedade, demais profissionais de saúde e, principalmente, pelos administradores de sistemas de saúde e órgãos governamentais”, acredita a Dra. Amouni, do CRF-SP.
O profissional farmacêutico também precisa estar preparado para assumir novas demandas trazidas pelos serviços e pela população. Ciente da carência de capacitação necessária para os novos papéis da farmácia no Brasil, a Abrafarma lançou uma Pós-Graduação latu sensu presencial, com reconhecimento do Ministério da Educação (MEC).
O programa é aberto a qualquer farmacêutico, basta comprovar a formação universitária na área. As disciplinas estão relacionadas a temas, como prescrição, saúde mental, distúrbios cardiovasculares e inflamatórios, entre outros.
Os profissionais participantes são diplomados como especialistas em Farmácia Clínica e Serviços Farmacêuticos e podem cumprir um programa de estágio na própria farmácia ou em consultório, com apoio de mentores.
Além da capacitação, todo o modelo de negócio da farmácia deve ser repensado – marketing, recursos humanos, operacional e comercial – para que a Farmácia Clínica seja, de fato, integrada ao estabelecimento.
“Acredito que se essa mudança de paradigma for ultrapassada, tem tudo para ser um sucesso e, principalmente, atender à necessidade da população por serviços de saúde”, aposta o gerente de marketing e treinamento da rede Farma Ponte e professor do curso de MBA da ESAMC, Uniararas e do Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ), Ricardo Silveira.
Há, ainda, alguns ajustes na regulamentação de alguns serviços e procedimentos a ser feitos para que a Farmácia Clínica funcione de maneira plena no Brasil.
“Precisamos, por exemplo, clarificar a realização de testes de saúde e exames rápidos nas farmácias, o que faria muita diferença para a população. É importante que a Anvisa revise a RDC 44/09, que já está ultrapassada”, acredita Correr.
Quando todos esses ajustes forem feitos, a farmácia poderá, enfim, exercer um papel importante no atendimento a uma população que está envelhecendo de maneira progressiva.
“A farmácia irá desenvolver uma participação diferente dentro do sistema de saúde, integrando-se de forma mais ativa no cuidado do paciente, colaborando com médicos, unidades de saúde, hospitais, planos de saúde. A farmácia é um lugar estratégico para o sistema, onde é possível trabalhar de forma muito assertiva diversos problemas da população, como adesão ao tratamento, gerenciamento de doenças crônicas, exames preventivos, tratamento de sintomas menores e educação em saúde”, destaca Correr.
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