Novos hábitos

A busca das pessoas por práticas mais saudáveis tem provocado transformações no mercado, seja no de cosméticos ou no de medicamentos. O avanço das opções veganas, por exemplo, mostra o potencial desse setor

Pouco a pouco, o número de pessoas que se declaram vegetarianas ou veganas vem crescendo no Brasil e no mundo. Apesar de não haver dados recentes sobre esse público no País a última pesquisa realizada em 2018 pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) Inteligência mostrou que cerca de 14% dos brasileiros se declaravam vegetarianos, sendo que nas regiões metropolitanas de São Paulo (SP), Curitiba (PR), Recife (PE) e Rio de Janeiro (RJ), o percentual subia para 16%.

Essa estatística já representava um crescimento de 75% em relação a 2012, quando a mesma pesquisa indicava que 8% da população pesquisada se declarava vegetariana. A pesquisa Ibope Inteligência ainda mostrou que 55% dos entrevistados consumiriam mais produtos veganos se houvesse uma melhor sinalização nas embalagens. Outro dado apontou que 60% dos entrevistados declararam que se os preços dos produtos veganos fossem compatíveis com o valor dos artigos de origem animal, eles dariam preferência para os veganos.

Em 2020, a Ingredion divulgou uma pesquisa realizada em parceria com a consultoria Opinaia revelando que cerca de 90% dos brasileiros estavam em busca de uma alimentação mais saudável e com base em produtos vegetais. Segundo a pesquisa, esse foi o maior índice entre os cinco países pesquisados, ou seja, Brasil, Argentina, Chile, Colômbia e Peru.

Dados como esses indicam uma tendência que veio para ficar e que está cada vez mais presente nas gôndolas. Já não é incomum encontrar, em destaque nos rótulos, a expressão “produto vegano” nas embalagens de alimentos e cosméticos.

“Nas últimas décadas, o modo de vida mais acelerado fez com que, ao longo dos tempos, começássemos a esquecer o lado da saudabilidade, tanto nos hábitos alimentares, quanto na atividade física e até mesmo na saúde mental. Mas agora, percebemos que as pessoas começam a identificar que cuidar da saúde, ter uma alimentação saudável e praticar esportes faz com elas tenham mais disposição para enfrentar esse dia a dia corrido”, comenta o presidente da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), Ricardo Laurino.

Segundo Laurino, quando se pensa em medicamentos veganos, ou seja, produtos não testados em animais e que não tenham ativos de origem animal agregados ao medicamento ou cosmético, tem início um processo de reflexão que leva as pessoas a pensarem em sua relação com o planeta, com a vida e com os outros animais.

Ele também destaca que as empresas que estão investindo na produção e venda de artigos veganos estão olhando além do mercado. “As empresas são constituídas de pessoas e, ao mesmo tempo em que são influenciadas pelo mercado, se influenciam internamente por conta de seus próprios questionamentos. Então, isso acaba criando um círculo virtuoso, em que o mercado estimula mais a demanda e as empresas entendem isso como algo positivo para atender não somente ao mercado, mas também à própria visão interna”, analisa.

O POTENCIAL DO CANAL FARMA

O varejo farmacêutico desempenha um importante papel como ponto de venda (PDV) de produtos naturais, veganos e vegetarianos. Laurino destaca que há dois aspectos que explicam essa realidade. O primeiro deles é a acessibilidade, ou seja, permitir que os produtos estejam perto do consumidor.

“Durante muito tempo, esses itens não apareciam nas gôndolas ou estavam escondidos. E deixar o produto ao alcance das pessoas é uma forma de ajudar, pois quebra-se a ideia de que esses artigos são específicos apenas para um grupo e, na verdade, o produto vegano é para todos”, comenta.  O segundo ponto é a possibilidade do canal trabalhar em parceria com a indústria, inclusive para que os preços dos produtos e medicamentos fiquem mais acessíveis.

Vale dizer que os cosméticos, alimentos e medicamentos veganos são aqueles que não contêm ingredientes ou foram testados em animais. Laurino diz que uma tendência que vem se concretizando nesse mercado é a de que o conceito vegano esteja alinhado à ideia de clean label, em que se buscam insumos mais naturais e com menor quantidade de aditivos.

O AVANÇO DA CANNABIS MEDICINAL

O uso da cannabis para fins medicinais tem mais de 6.000 anos. As pesquisas científicas começaram a partir da década de 1950 e foram avançando com a descoberta dos dois primeiros componentes da planta, THC e CBD e de receptores presentes no organismo, CB1 e CB2, onde estes dois componentes atuam.

“A partir daí, as pesquisas foram evoluindo e outros fitocanabinoides foram descobertos. O sistema endocanabinoide, local onde os fitocanabinoides atuam, tornou-se alvo de crescente interesse. Porém, a criminalização da cannabis a partir do fim da década de 1930 fez com que os estudos caminhassem, porém mais lentamente”, lembra a médica pós-graduada em Endocanabinologia, cannabis e cannabioides e membro da Society of Cannabis Clinicians (SCC) e da International Association for Canabinoid Medicines (IACM), Dra. Maria Teresa Jacob.

Recentemente, no final de 2020, a Organização das Nações Unidas (ONU) retirou a cannabis da classificação de substância altamente perigosa e viciante, o que deve permitir que os estudos avancem mais rapidamente. “O Brasil ocupa um lugar de destaque no cenário mundial como um dos países que mais apresentam publicações sobre o uso de cannabis para fins medicinais”, conta.

Ela explica que os medicamentos são produtos feitos a partir de substâncias presentes na cannabis, seguindo todas as etapas e exigências internacionais para produção de medicamentos para uso humano e animal. “Estes medicamentos podem conter somente o fitocanabinoide CBD ou diferentes combinações de canabinoides (THC, CBG, CBN, etc.), assim como outras substâncias que ela contém (terpenos, flavonoides, etc.)”, diz.

Os canabinoides são exclusivos da planta cannabis, enquanto terpenos, flavonoides e outros estão presentes em outras plantas. “Os fitocanabinoides, atualmente com mais de 120 já conhecidos, interagem com o sistema endocanabinoide, fazendo com que ele atue reequilibrando o órgão ou a região que está em desequilíbrio, devolvendo a saúde ao organismo”, esclarece a Dra. Maria Teresa.

Ela explica que, pelo fato de o sistema endocanabinoide estar presente em todas as células do corpo, a cannabis para uso medicinal pode ser um tratamento coadjuvante para as mais diversas patologias. Entre elas, epilepsia refratária; autismo; Alzheimer; Parkinson; ansiedade; depressão; insônia; pânico; endometriose; dor crônica oncológica ou não; efeitos adversos da quimioterapia (náuseas e vômitos); fibromialgia; enxaqueca; entre outras.

“O que os estudos mostram e que também se observa na prática clínica, é a melhora dos sintomas, muitas vezes possibilitando a diminuição ou até a retirada de alguns medicamentos tradicionalmente prescritos, melhorando muito a qualidade de vida do paciente”, comemora a especialista.

No Brasil, os medicamentos à base de cannabis são vendidos sob prescrição médica e só podem ser importados por pessoas físicas por meio do que define a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 335/2020, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Entre janeiro e agosto de 2021, 19.145 pacientes pediram autorização para importar cannabis medicinal até agosto. O número já supera o total de 15.566 pedidos feitos em todo o ano de 2020.

Mantido o ritmo de pedidos, estima-se que o total de novos pacientes em 2021 alcance quase 30 mil, com receita de R$ 229 milhões. Para 2022, a expectativa é de que as empresas do setor mais do que dobrem o faturamento, chegando a R$ 500 milhões, segundo prevê o diretor executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Canabinoides (BRCANN), Tarso Araujo.

Segundo ele, com a aprovação da RDC 327/2019, em dezembro de 2019, e que entrou em vigor em março de 2020, a Anvisa aprovou a regulamentação do registro de medicamentos à base de canabinoides. “Passados quase dois anos desde a regulamentação dos registros de medicamento à base de cannabis no Brasil, as indústrias que atuam no País fecham o mês de janeiro com 11 produtos autorizados para comercialização em redes de farmácias. Uma grande parte destes produtos deve chegar ao varejo ainda no primeiro semestre”, revela.

No País, os produtos à base de cannabis foram classificados por meio de um modelo regulatório híbrido, em que as empresas deverão inicialmente comprovar a qualidade do produtos e, posteriormente, a eficácia e segurança, em um prazo de cinco anos.

“Mesmo com a chegada nas farmácias brasileiras dos primeiros produtos nacionais à base de canabinoides, o mercado de importação segue avançando com base na forte alta da demanda. A convivência da importação, em paralelo com a venda nas farmácias, deve permanecer ao longo dos cinco anos desta fase de transição, até que haja um equilíbrio entre ofertas de produtos nas farmácias com a demanda, além de preços cada vez mais acessíveis para todos os tratamentos, o que deve ocorrer à medida que aumenta a competição entre as empresas”, finaliza o executivo da BRCANN.

Fonte: Guia da Farmácia
Foto: Shutterstock