Doença bate recorde de casos fatais

O ano nem acabou e as ocorrências de morte já superaram as maiores registradas em 2013. Especialistas alertam para a importância das ações de prevenção. vacina contra a moléstia é aprovada pela CTNBio 

Entre janeiro e agosto deste ano, foram registrados, no Brasil, 693 casos de mortes ocasionadas pela dengue, a maioria de pessoas idosas, segundo o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde (MS). Ao longo desse período, foram computados cinco casos graves por dia. Tais números fazem com que o ano de 2015 registre o recorde de casos e de vítimas fatais pela doença mesmo antes de o ano se encerrar. 

O recorde anterior foi registrado em 2013, quando ocorreram 674 óbitos em todo o País. De acordo com o boletim do MS, nos oito primeiros meses de 2015, foram compilados 1,4 milhão de casos da doença, dos quais 1.284 foram classificados como quadros graves. Já o número de mortes neste ano é 70% maior do que o registrado no mesmo período de 2014, quando 407 pessoas morreram. 

Ter havido mais mortes de idosos neste ano está relacionado, segundo o MS, ao fato de as pessoas com mais de 60 anos estarem sujeitas a comorbidades e fatores de risco que são complicados pela dengue. Além disso, em decorrência da existência de mais de um tipo de vírus que circula de forma alternada, as epidemias se comportam de forma cíclica. 

“Em um país de dimensões continentais, com diferenças estruturais e climáticas, é esperado que o comportamento seja diferente ao longo do tempo e do espaço. Vale ressaltar também que alguns municípios apresentam fragilidades na condução das ações de prevenção e controle da dengue. O MS tem se esforçado para a resolução desses problemas e o fortalecimento da política de gestão no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)”, explica o coordenador do Programa Nacional de Controle da Dengue do MS, Giovanini Coelho.

A Região Sudeste concentra 68,5% dos óbitos do País, com o maior número de mortes registradas no estado de São Paulo, de acordo com o levantamento do MS. Em São Paulo, 667,5 mil pessoas foram infectadas. Do total de brasileiros que morreram neste ano por causa da doença, 58% viviam em cidades paulistas, o equivalente a 403 óbitos. São Paulo teve 1.516 casos por grupo de 100 mil habitantes registrados, e perde em incidência relativa apenas para Goiás (1.979 casos por 100 mil habitantes), que foi o segundo estado com o maior número de mortes: 67, seguido por Ceará (50), Minas (47) e Paraná (24). Só quatro estados não registraram morte no período pesquisado: Acre, Roraima, Sergipe e Santa Catarina. 

Consultada, a Secretaria de Saúde de São Paulo afirmou que não cabe a ela a atuação direta de combate à doença, mas que oferece suporte aos municípios paulistas quando necessário. Também não comentou sobre os motivos que levaram São Paulo a liderar o número de casos e de vítimas fatais da doença neste ano. Segundo informações divulgadas, a Secretaria de Saúde paulista afirma ter antecipado, em três meses, os trabalhos de prevenção da dengue. Já o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, sancionou lei que permite aos agentes sanitários entrar à força nos imóveis particulares fechados para combater os focos do mosquito Aedes aegypti.

Por que o Brasil não consegue vencer a dengue?

Apesar de campanhas de esclarecimento à população, ações de prevenção oficiais e conhecimento da doença por parte dos profissionais de saúde, o País ainda enfrenta grandes entraves na eliminação da doença.

O historiador e pesquisador, doutor em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Dr. Rodrigo César da Silva Magalhães, que estudou a erradicação do Aedes aegypti no País durante um período, fornece algumas pistas. “Em virtude do desmonte da estrutura permanente de combate à dengue e vigilância epidemiológica nas últimas décadas, o combate ao mosquito transmissor só é realizado quando eclodem as epidemias. Ou seja, apenas quando a situação assume certo grau de gravidade é que surge a preocupação em combater o inseto. O ideal seria que as atividades de combate ao mosquito fossem permanentes e acompanhadas de medidas de saneamento básico e urbanização”, afirma o Dr. Magalhães. 

O pesquisador lembra que, em 1958, durante a XV Conferência Sanitária Pan-Americana, realizada em San Juan, Porto Rico, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) declarou o Brasil livre do Aedes aegypti. Nos nove anos seguintes, o inseto não foi encontrado no território brasileiro, até reaparecer em Belém, em 1967. “Essa conquista do campo médico-sanitário nacional foi resultado de campanhas contra a febre amarela desenvolvidas no País desde as primeiras décadas do século 20”, esclarece.

“Não se pode afirmar que houve um ‘desmonte’, pois os órgãos responsáveis pelo planejamento e execução das ações de controle de endemias foram sendo estruturados levando em consideração as experiências acumuladas ao longo do tempo”, contrapõe Coelho. “Passou-se de um modelo dito campanhista, baseado principalmente em ações desenvolvidas por instituições federais, para um de programas permanentes de controle. Essa mudança de modelo de intervenção propiciou uma ampla cobertura de atividades de prevenção e controle, por intermédio da municipalização, o que não era possível nas estratégias de campanhas”, explica o coordenador do MS. 

É inegável também, segundo ele, que os desafios de hoje são bem diferentes daqueles vigentes em décadas passadas. “A dengue apresenta fortes determinantes socioambientais de grande importância, destacando que a população brasileira dobrou entre 1970 e 2000 e ocorreu uma intensa migração para a periferia dos grandes centros urbanos.”

Nas décadas de 1980/1990, verificou-se grande dispersão do vetor Aedes aegypti com a infestação da maioria dos municípios brasileiros. “Outro fator importante foi o aumento da produção de recipientes descartáveis e as recentes mudanças climáticas, que resultaram no aumento das áreas geográficas com possibilidade de transmissão”, afirma Coelho. 

O tempo quente associado a pancadas de chuva ocasionais cria um cenário favorável para a proliferação do vetor de transmissão da doença. “É emblemático o caso da recente crise hídrica em São Paulo, com a possibilidade de elevação dos índices de infestação vetorial em decorrência do armazenamento inadequado de água nas residências”, pontua Coelho. “Tais características, somadas ao alto potencial de transmissão do vetor e à existência de quatro sorotipos da doença, cuja circulação se alterna ao longo do tempo, afetando periodicamente contingentes da população não imune, levam a um quadro de difícil controle da doença.”

O Dr. Magalhães destaca que o Brasil sempre foi pioneiro nas pesquisas e no combate ao Aedes aegypti. Boa parte do prestígio da medicina brasileira no continente, com uma geração importante de sanitaristas como Oswaldo Cruz, deve-se às atividades desenvolvidas no País no combate a enfermidades, como a febre amarela. “Essa preponderância nacional, felizmente, não se perdeu. No ano passado, a Fiocruz deu início a uma etapa do projeto ‘Eliminar a Dengue: Desafio Brasil’. Trata-se de uma iniciativa pioneira que procura combater a dengue de forma natural e sustentável. Foram liberados em um bairro da Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, mosquitos Aedes aegypti com a bactéria wolbachia, que tem a capacidade de reduzir a transmissão do vírus da dengue pelo mosquito. A bactéria é transmitida naturalmente para as gerações futuras de mosquitos, interrompendo o ciclo de transmissão da doença”, revela o pesquisador.

O que é a dengue e Como tratá-la?

A dengue é uma doença infecciosa causada por um vírus da família Flaviridae e é transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, também infectado pelo vírus. O período de incubação da moléstia varia de quatro a dez dias, sendo em média de cinco a seis dias. A infecção por dengue pode ser assintomática ou causar doença cujo espectro inclui até quadros graves com choque e hemorragia, por exemplo, podendo evoluir até mesmo para óbito.

“Geralmente, a primeira manifestação da dengue é a febre alta (39° a 40°C) de início abrupto que pode durar de dois a sete dias, acompanhada de dor de cabeça, náuseas e vômitos. Manifestações hemorrágicas leves também devem ocorrer”, explica a médica sanitarista do Instituto de Infectologia Emílio Ribas de São Paulo, Dra. Ana Freitas Ribeiro. “As dores de cabeça são principalmente retro-orbital (atrás dos olhos) e dores musculares também podem ocorrer”, complementa o professor sênior da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Marcos Boulos.

Manchas e erupções na pele semelhantes ao sarampo, principalmente no tórax e membros superiores, também podem surgir, assim como tonturas, cansaço extremo, moleza e dores nos ossos e articulações, relata o subsecretário de Vigilância em Saúde da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, Alexandre Chieppe.

No Brasil, há circulação dos quatro sorotipos da doença (1, 2, 3 e 4), podendo intercalar períodos de alta ou baixa transmissibilidade, dependendo do tipo de vírus que circula e da suscetibilidade da população. “Sob o aspecto clínico, os quatro são iguais e podem gerar o mesmo tipo de quadro. Embora o sorotipo 4 não seja nem mais nem menos perigoso que os demais, por ser um microrganismo novo em circulação, tem uma população maior (que nunca pegou este vírus) vulnerável”, revela a Dra. Ana.

Um indivíduo que teve dengue pode pegá-la novamente, mas de um tipo diferente de vírus, como salienta a médica. “A suscetibilidade ao vírus da dengue é universal. A imunidade é permanente para um mesmo sorotipo. Por exemplo, o indivíduo que já teve dengue pelo sorotipo 1 não poderá adoecer pelo mesmo vírus, mas quando infectado por outro sorotipo, poderá desenvolver a doença novamente.”

Já a gravidade da doença depende de fatores individuais, como idade (crianças e idosos são mais suscetíveis às complicações) e a presença de comorbidades (doenças pulmonares ou cardiovasculares crônicas, diabetes mellitus, anemia falciforme e outras doenças). “A predominância nos últimos anos é do dengue 1, apesar de termos tido dengues 2, 3 e 4. Já a letalidade não está relacionada ao tipo de vírus”, observa Boulos. “A infecção secundária por outro sorotipo aumenta o risco de gravidade, como demonstrado em estudos soro-epidemiológicos em Cuba e Tailândia. Entretanto, não se pode abaixar a guarda nem para casos teoricamente mais simples. Isso porque também há relatos de casos de dengue grave associados com a primeira infecção”, adiciona A Dra. Ana.

O tratamento da doença consiste em medicamentos sintomáticos e hidratação, dependendo da classificação do caso (A, B, C e D), ambulatorial ou internado, conforme normas do MS. A hidratação é o principal tratamento que deve ser orientado pelo médico, com cálculo do volume diário a partir do peso do paciente. Os sintomáticos podem ser utilizados, mas devem ser prescritos pelo médico, por exemplo, paracetamol e dipirona. Sobre outras medicações, há algumas restrições importantes. “Os salicilatos, como o Ácido Acetilsalicílico (AAS), são contraindicados e não devem ser administrados, pois podem causar ou agravar sangramentos. Os anti-inflamatórios não hormonais (cetoprofeno, ibuprofeno, diclofenaco, nimesulida e outros) e as drogas com potencial hemorrágico também não devem ser utilizados”, salienta a Dra. Ana.

 

Vacina como arma segura

Também estão em curso estudos para criação de uma vacina contra a dengue. O Instituto Butantan e o BioManguinhos/Fiocruz, atualmente, encontram-se em diferentes estágios de pesquisa sobre a produção da vacina. A vacina do Butantan é a iniciativa em fase mais avançada de desenvolvimento. Recebeu aprovação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) para iniciar a fase três de estudo clínico da vacina nacional, que é desenvolvida em parceria com o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos [National Institutes of Health (NIH)]. Essa etapa é a última antes de o produto ser submetido à avaliação das agências regulatórias. 

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recebeu, em março último, o primeiro pedido em todo o mundo de registro de uma vacina contra a dengue produzida por um laboratório particular – Sanofi Pasteur – que foi aprovada recentemente, pela CTNBio, mas ainda não pela Anvisa. Segundo o MS, sem o registro concedido pela Anvisa, o produto não pode ser utilizado, mas a aprovação pela CTNBio representa um grande avanço.

“Após o processo de registro, essa vacina, como qualquer outro produto ou tecnologia, será avaliada pelos Comitês Técnicos Assessores em Imunizações e em Dengue, do MS, que reúnem especialistas e sociedades científicas, passando ainda pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) no SUS”, explica Coelho.

Controle mecânico

Apesar dos avanços nas pesquisas contra o vírus, a forma mais eficaz de atuação ainda é o combate dos criadouros do mosquito transmissor, como explica o subsecretário de Vigilância em Saúde da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, Alexandre Chieppe. “Além das ações do município, por meio do agentes de prevenção às endemias, a população tem um papel fundamental, uma vez que o Aedes aegypti é um mosquito com predileção pelo ambiente domiciliar.” 

Como a maior parte dos criadouros se localiza dentro das casas, o poder público tem limitações para o controle do vetor, faz coro o professor sênior da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Marcos Boulos. “Por isso, é fundamental a participação da população para controle do Aedes.” É importante não jogar lixo nas ruas ou em terrenos baldios, destacam os especialistas, pois ele pode se transformar em criadouro de mosquitos. Cabe ao governo do estado atuar de forma complementar, auxiliando os municípios nas ações de controle do mosquito, bem como em ações de suporte ao atendimento aos pacientes com dengue junto à rede municipal de saúde. A União tem o papel de regulamentador das orientações técnicas e apoio no financiamento das ações. 

Para intensificar as medidas de vigilância, prevenção e controle da dengue, o MS afirma ter repassado, em janeiro deste ano, recurso adicional de R$ 150 milhões a todos os estados e municípios brasileiros. O montante é exclusivo para qualificação das ações de combate aos mosquitos transmissores da dengue e do chikungunya, o que inclui a contratação de agentes de vigilância. Do total repassado, R$ 121,8 milhões foram para secretarias municipais de saúde e R$ 28,2 milhões às secretarias estaduais. Esse valor soma-se ao Piso Fixo de Vigilância e Promoção da Saúde, que, em 2015, será de R$ 1,25 bilhão, e se destina ao custeio de todas as ações de vigilância em saúde, inclusive da dengue. 

Também a iniciativa privada tem dado sua contribuição na difusão de informações sobre a dengue. O Laboratório Osler, fabricante do repelente Exposis, criou um canal exclusivo para educação a distância. No site www.academiaosler.com.br, o farmacêutico pode fazer o curso on-line em vídeo sobre Profilaxia de Exposição a Doenças Vetoriais, tornando-se especialista em proteção contra picadas de insetos transmissores de doenças. Segundo a empresa, mais de seis mil farmacêuticos concluíram o curso na Academia Osler.


Autor: Marcelo de Valécio

Alta do dólar

Edição 276 - 2015-11-01 Alta do dólar

Essa matéria faz parte da Edição 276 da Revista Guia da Farmácia.

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