Especialistas discutem se modelo americano de farmácia é viável no Brasil

Muitos varejistas almejam implantar estilos de farmácias similares aos praticados nos Estados Unidos, com lojas enormes e a venda das mais variadas categorias de produtos, mas fica a dúvida: essa realidade se encaixaria no mercado brasileiro?

A grama do vizinho é sempre mais verde. O ditado popular expressa muito bem o que o varejo brasileiro sente quando observa o modelo de operação das farmácias estrangeiras. Lojas com múltiplos andares, metros e metros de corredores preenchidos por gôndolas abastecidas com as mais diversas categorias. Medicamentos ficam em uma área reservada, quase isolada de toda a imensidão de produtos à venda. Em meio a xampus, sabonetes e maquiagem, estão frutas, legumes, pratos congelados, bebidas alcoólicas, ferramentas, produtos de limpeza, ração de animais e muito mais do que a imaginação do consumidor brasileiro possa alcançar.

Grande parte dos varejistas farmacêuticos sonha em replicar esse modelo de loja no Brasil. Em alguns estados, em que a legislação local permite a comercialização de artigos de conveniência nas farmácias, o sonho está mais próximo da realidade, em outros ainda é motivo de disputa entre empresariado e as Vigilâncias Sanitárias estaduais. Mas mesmo nas regiões em que não há restrições, ainda são pouquíssimas as lojas que se remetem ao modelo aplicado nos Estados Unidos.

A observação de ambas as realidades leva a algumas reflexões. Por que as operações das farmácias brasileiras estão tão distantes da maturidade observada lá fora? Seria realmente interessante replicar o modelo, sendo que se tratam de mercados tão distintos? A venda de artigos de conveniência é o melhor caminho para aumentar a rentabilidade das farmácias, que têm a margem de lucro tão apertada por conta da guerra de descontos?

As opiniões se divergem entre os especialistas em varejo entrevistados pelo Guia da Farmácia. Para o presidente executivo da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), Sérgio Mena Barreto, a expansão do tamanho das lojas e da variedade de produtos vendidos é uma tendência que deve ser perseguida e, inclusive, já é aplicada por algumas redes.

“As lojas atuais já são bem maiores que há dez anos. Hoje, em média, as farmácias das grandes redes têm em torno de 250 metros, mas necessitamos de mais espaço para investir no crescimento de categorias. As lojas que serão inauguradas devem ter porte cada vez maior”, acredita, destacando o exemplo da Drogaria Araújo, que opera em Minas Gerais, um dos estados em que a venda de artigos de conveniência é liberada. ”A rede tem unidades com 800 metros quadrados, mais de um andar e escada rolante”, descreve.

Acontece que, no Brasil, a grande maioria do número de lojas ainda pertence a pequenas e médias redes independentes ou associativistas. Para elas, uma operação similar à observada nos Estados Unidos talvez não seja tão interessante, como ressalta o presidente da Federação Brasileira das Redes Associativistas e Independentes de Farmácias (Febrafar), Edison Tamascia. “A partir do momento em que se libera a venda de artigos de conveniência, cria-se um nível concorrencial diferente. Hoje, conseguimos competir com qualquer um, mas para vender outros produtos, é preciso ter uma loja maior, mais bem setorizada. Aí, quem tem mais estrutura e recursos leva maior vantagem. Cria-se um modelo que privilegia instituições maiores”, destaca, ressaltando que se trata e de uma opinião pessoal, divergente da maioria dos associados da Febrafar.

O receio de Tamascia pode ser confirmado ao observarmos os números do varejo farmacêutico nos Estados Unidos. No Brasil, as quatro grandes redes farmacêuticas controlam apenas 25% do mercado nacional. Já nos Estados Unidos, esse percentual é de 60%. Enquanto no Brasil, os pequenos ou independentes detêm quase 50% do mercado, nos Estados Unidos, este valor não ultrapassa os 20%.
Para defender-se da ameaça da chegada dos gigantes, as médias e pequenas redes precisam se imunizar. “É necessário buscar formas de se fortalecer, seja por meio de cooperativas, associações, unir-se para ganhar escala, aumentar o nível de profissionalização. Quinze anos atrás, as redes regionais eram maioria nos Estados Unidos, mas, aos poucos, foram sendo absorvidas pela Walgreens e CVS”, ressalta o presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), Eduardo Terra.

No entanto, mesmo entre as gigantes, a venda de artigos de conveniência não se mostrou sempre tão eficiente. O varejo farmacêutico americano tem um exemplo clássico para ilustrar a afirmação. As maiores redes de farmácia dos Estados Unidos – CVS Caremak e Walgreens – operam ambas com 8 mil lojas espalhadas pelo país. No entanto, a CVS faturou o dobro que a concorrente no ano passado.
De acordo com Terra, a Walgreens investiu massivamente em produtos de conveniência, como alimentos e bebidas, para fazer frente aos supermercados. Já a CVS concentrou os esforços em criar um conceito e não um portfólio de produtos. O grande diferencial da rede são as chamadas “MinuteClinic”, clínicas instaladas dentro das próprias farmácias, onde o cliente pode agendar consultas rápidas, para serviços médicos, como curativos, tratamento de lesões, infecções, entre outras enfermidades mais corriqueiras. Nessas unidades, existem enfermeiros e médicos que examinam e prescrevem medicamentos para os pacientes, que compram dentro da própria loja os produtos de que necessitam.

“A rede decidiu que queria vender saúde e, a partir dessa premissa, foi diversificando os serviços. Hoje, quase todas as lojas contam com uma clínica farmacêutica, que oferece consultas rápidas ao cliente, sem necessidade de agendamento prévio”, analisa Terra. Para o executivo, a maior barreira encontrada pela Walgreens foi o tamanho dos concorrentes ao decidir se posicionar como um minimercado. “A CVS talvez tenha se dado melhor por apostar em um nicho em que a concorrência é menor, já a Walgreens concorre com todo mundo, Walmart, Target”, pontua Terra.

Mesmo diante dessa dificuldade, Barreto da Abrafarma não considera que investir em saúde seja mais correto do que em conveniência, ou que os caminhos sejam excludentes. O recomendável é que se analise as necessidades e perfil do público consumidor de cada loja, as atividades comerciais no entorno e o potencial dos concorrentes. “Se você acha que determinado mercado é mais carente de conveniência, a farmácia pode fazer o papel do mercadinho, da padaria. Na Walgreens, alimentos frescos, congelados, enlatados e bebidas convivem com produtos de higiene e beleza e com consultório médico. Não diria que investir apenas em saúde é o mais certo. Queremos acrescentar esse papel à farmácia, mas nem toda loja vai ter condições”, pondera Barreto, citando um exemplo hipotético. “Copacabana, no Rio de Janeiro, é uma área de grande tráfego, com forte apelo comercial, onde um atendimento clínico não se encaixa, ninguém tem tempo. Em outros locais, cabe um serviço mais demorado, personalizado.”

Expectativa e rumores

As discussões sobre o quão viável é replicar o modelo americano de farmácias no mercado brasileiro continua, mas a resposta às dúvidas não deve tardar a chegar, já que especulações dão conta de que uma internacionalização mais contundente do varejo farmacêutico brasileiro – a CVS já está presente no País, com 80% do controle da Onofre – está próxima de ocorrer. Nos jornais, revistas especializadas e conversas informais entre empresários do setor, o assunto é um só: propostas de compra que empresas estrangeiras teriam feito a grandes redes de farmácia brasileiras. Caso as negociações se concretizem, há uma expectativa a respeito dos rumos que o setor irá tomar.

O primeiro alvo dos rumores foi a Brasil Pharma, como relatado na reportagem a seguir (página 54). Outra especulação ganhou os holofotes no último mês. Apesar dos envolvidos negarem, fontes do varejo farmacêutico afirmam que a CVS Caremark, mais rentável rede de farmácias dos Estados Unidos, vem assediando o grupo DPSP, dono das redes de farmácias Pacheco e Drogaria São Paulo. As conversas teriam se iniciado ainda em 2014 e sido retomadas no início deste ano, desta vez por iniciativa da companhia brasileira, sinal que indicaria certa disponibilidade do grupo de se desfazer do negócio, após recusar duas ofertas da CVS no ano passado.

A negociação estaria estagnada devido a um impasse entre parte dos sócios da DPSP, liderados pelos controladores da cadeia paulista, que tem interesse na venda, e a família Barata, fundadora da Pacheco, que possui fatia de 51% do grupo. A rede chegou a recusar uma proposta de R$ 5 bilhões. A valorização do ‘passe’ se dá pelo fato que a Pacheco/São Paulo se vê como a uma das melhores opções para os planos de expansão da CVS no Brasil. Restam poucas alternativas entre operações de grande porte.

No início de 2015, outros rumores indicavam que teria sido feita uma nova proposta em torno de R$ 6,5 bilhões e que as conversas avançaram. A valorização do dólar pode contribuir para que o acordo seja selado. A fase de investigação e auditoria nas contas e nos negócios da DPSP já teriam começado, inclusive. Os envolvidos até agora não se manifestaram sobre o assunto. Cabe, então, a outros protagonistas da varejo farmacêutico darem seus palpites a respeito das movimentações.

Para o presidente da rede Pague Menos, Deusmar Queiróz, a conclusão das negociações entre brasileiros e americanos pode demorar um pouco para ser efetivada. Em 2012, a Walgreens comprou 45% da Alliance Boots, rede de farmácia da Europa, com sede no Reino Unido, por US$ 6,7 bilhões. No final do ano passado, anunciou a compra da Farmacias A humada, por cerca de £ 400 milhões, dando o primeiro passo de entrada na América Latina. A compra abrange duas empresas principais, no México e no Chile, que em conjunto operam mais de 1.400 lojas. “Acredito que eles vão primeiro liquidar estes pagamentos para pensar em outras aquisições. Acho que não vai ser agora.”

Já a CVS deve mesmo adquirir uma rede maior, pois o porte da Onofre não é suficiente para uma operação expressiva no Brasil. “A meu ver, eles passaram esses dois anos estudando o mercado nacional.” A negociação, no entanto, esbarra no valor e na relação pessoal que a família Barata possui com o negócio. “A informação que eu tenho é que, com o aumento da oferta feita pela CVS, a família está mais inclinada a aceitar a venda.”

Além das questões internas que serão resolvidas entre as redes, o cenário macroeconômico e político do Brasil também pode frear as negociações. “Devem-se observar que as inseguranças políticas do País levam a um cenário internacional de restrição de entrada. O Brasil, que há alguns anos despontava como forte candidato a investimentos, perde seu lugar para países como México e até a Ásia branca”, acredita a diretora vogal do Instituto Brasileiro de Executivos do Varejo e Mercado de Consumo (Ibevar) e coordenadora acadêmica da Academia de Varejo, Patricia Cotti.
Por vias das dúvidas, a Pague Menos já está investindo em novos modelos de loja para buscar diferenciação e brigar pelo consumidor não só no preço. A exemplo da Minute Clinic da CVS, as novas lojas da rede estão sendo inauguradas com um espaço reservado de dez metros quadrados para um atendimento individual do paciente. “Acredito que o futuro é esse. Vamos investir na aplicação de vacinas, exames mais simples. Vou tratar meu cliente melhor, resgatando o papel do farmacêutico de antigamente”, conta Queiróz.

O que muda?

Ainda que uma consistente internacionalização do setor não tenha começado, ficam os questionamentos a respeito do impacto que as novas operações causariam no varejo farmacêutico nacional. Para Patricia, a princípio, as mudanças não devem ser radicais, pois o modelo de negócio das farmácias americanas é muito diferente e não será facilmente aplicado à realidade brasileira.

“Os varejistas americanos trabalham a parte de retail separadamente da de medicamentos. Tratam-se de uma cultura e um modelo de negócios locais, construídos ao longo dos anos e de comportamentos de consumo daquele tipo de população. Mesmo se as restrições legais não existissem, ainda assim, a barreira para esse tipo de modelo de negócio permaneceria, pois a cultura brasileira não está acostumada a esse tipo de compra”, aponta.

Além das diferenças culturais, os estrangeiros não têm amplo conhecimento do mercado nacional, o que pode causar alguns equívocos nas estratégias operacionais. “O grande diferencial do empresário brasileiro é o fato de conhecer o local, o consumidor e o funcionamento das coisas. O operador local é sempre mais competente que o operador de fora”, defende Barreto, dando alguns exemplos. “É só você observar as redes brasileiras. A maior rede do Paraná é local, a maior rede do Rio é local, em São Paulo, a mesma coisa.”

Mas ainda que a vida dos estrangeiros não seja tão simples em território nacional, é preciso enxergar que a internacionalização é iminente. E não é uma particularidade do varejo farmacêutico, é uma tendência global. Há três anos, apenas 12 das top 250 varejistas do mundo atuavam em solo brasileiro. Em 2014, esse número passou a ser de 35 empresas – mais que o dobro, de acordo com o último relatório da Deloitte.

“O fenômeno da globalização do varejo deixou, há muito, de ser tendência para ser realidade, independentemente do tipo de produto que é vendido. Lógico que, em alguns segmentos específicos, como no caso farmacêutico, existem barreiras fortes de entrada a ser superadas (como a legislação local), mas isto não significa que a tendência não vá chegar. Resta saber quando”, analisa Patricia.
E para competir com americanos, é preciso ir além da pura e simples venda de artigos de conveniência. Os processos operacionais e relacionamento com o cliente precisam estar muito afinados para que se possa fazer frente a essas gigantes. “Em termos de engajamento com o consumidor, essas redes exploram e valorizam muito o contato e relacionamento. Caso existam mudanças no modelo nacional, acredito que seja por meio de programas de engajamento e eficiência operacional interna (talvez apostando em otimização de processos, utilização de recursos tecnológicos, etc.)”, aposta o consultor da GS&AGR (divisão da GS&MD – Gouvêa de Souza), Marcelo Menta.

Varejo estrangeiro

Edição 269 - 2015-04-01 Varejo estrangeiro

Essa matéria faz parte da Edição 269 da Revista Guia da Farmácia.

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