
A reforma tributária aprovada com a Emenda Constitucional nº 132/2023 e regulamentada pela Lei Complementar nº 214/2025 já começa a redesenhar o cenário para o setor farmacêutico no Brasil.
Previstas para entrarem em vigor plenamente até 2026-2032, as mudanças prometem simplificar a estrutura tributária, mas também representam desafios para indústrias, distribuidoras, farmácias e para o consumidor final.
No meio das intensas discussões sobre a reforma tributária brasileira, fontes especializadas do setor farmacêutico têm desempenhado papel crucial na interpretação técnica, no alerta de riscos e no protagonismo das negociações com o poder público.
Em entrevistas exclusivas ao Guia da Farmácia, o CEO da SimTax, Jiovanni Coelho, o presidente executivo do Grupo FarmaBrasil, Reginaldo Arcuri e o diretor executivo da Peers Consulting + Technology, Alex Osoegawa, esclarecem as principais dúvidas sobre o tema.
Entendendo a reforma
A Reforma Tributária tem o objetivo de simplificar o sistema de tributação brasileiro substituindo diversos tributos por um sistema de Imposto sobre Valor Agregado (IVA dual).
No setor da Saúde, promete uma redução de 60% dos impostos relacionados a medicamentos pré-selecionados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), enquanto a tributação sobre a prestação de serviços deve aumentar. “No entanto, devido ao novo sistema de créditos, esse acréscimo pode não impactar diretamente os custos finais dos prestadores de serviços”, explica Osoegawa.
Segundo ele, embora o novo sistema prometa simplificação e maior transparência, na prática, a gestão tributária pode se tornar mais complexa, principalmente no início do período de ajustes e adaptações. “Isso acontece porque as mudanças na tributação exigem não apenas uma adaptação operacional, mas também uma revisão completa do modelo de gestão tributária, logística e financeira, além do fortalecimento de uma governança tributária e da adoção de tecnologias para automatizar os novos processos fiscais”, pontua.
Para o Grupo FarmaBrasil, o PLP 108/2024, que regulamenta a reforma tributária, corrigiu distorções e aprimorou a lista de medicamentos com alíquota zerada. “As emendas corrigem distorções ao substituir a lista fixa por um sistema dinâmico fundamentado no registro da Anvisa, garantindo critérios mais adequados às necessidades da população, além de assegurar maior previsibilidade para o setor farmacêutico”, avaliou o presidente executivo do Grupo FarmaBrasil, Reginaldo Arcuri.
Novos impostos
A reforma tributária, conforme explica Coelho, vai acabar com os impostos como PIS, COFINS, ICMS e ISS, criando outros novos:
- CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços): cobrada pelo governo federal;
- IBS (Imposto sobre Bens e Serviços): cobrado pelos estados e municípios;
- IS (Imposto Seletivo): cobrado pelo Governo Federal.
“O CBS e IBS vão funcionar de forma não cumulativa, ou seja, a farmácia paga, mas também recupera créditos sobre tudo o que compra para sua operação. Na prática, isso muda a forma como os tributos são calculados e exige atualização de sistemas, notas fiscais e cadastros”, afirma.
Além disso, a lei criou regras especiais para o setor de saúde:
- Medicamentos com alíquota reduzida em 60% (pagam só 40% do imposto);
- Medicamentos essenciais com alíquota zero;
- E isenção total para produtos vendidos a órgãos públicos e hospitais filantrópicos (CEBAS).
“Resumindo, o objetivo é reduzir impostos sobre produtos de saúde, mas o caminho exige adaptação e organização das farmácias”, diz Coelho.
Impactos nas farmácias
No começo, as mudanças devem ter impactos mais significativos nas farmácias. “Durante a transição (2026 a 2032), o sistema antigo e o novo vão funcionar ao mesmo tempo, e as farmácias terão de conviver com dois modelos de cálculo. Mas depois que tudo estiver implantado, o sistema tende a ficar mais simples e transparente”, avalia Coelho, acrescentando que a principal vantagem é que a farmácia vai conseguir saber exatamente quanto paga e quanto recupera de imposto, o que hoje é muito confuso.
Na prática:
- No curto prazo: mais trabalho para adaptar o sistema.
- No médio prazo: gestão tributária mais clara e previsível.
As farmácias enfrentarão mudanças no ICMS e a criação do IBS, impactando a distribuição e precificação. “O fim da guerra fiscal entre estados pode afetar a vantagem competitiva de redes com Centros de Distribuição (CDs) em estados incentivados. Haverá também uma redução da margem com genéricos devido a novas alíquotas e a necessidade de adaptação de processos internos para lidar com a nova estrutura fiscal”, diz Osoegawa.
Preços dos medicamentos podem aumentar?
Na opinião de Osoegawa, a reforma pode provocar aumento nos preços dos medicamentos para o consumidor final, especialmente aqueles que antes faziam parte da Lista Positiva e agora passarão a ser taxados em 60%, pois não integram mais a lista disposta em anexo da Lei Complementar. “Esse é o caso de alguns medicamentos contra o câncer, o que pode ocasionar um tratamento mais custoso para o paciente, caso os custos dos impostos não sejam compensados de outro modo”, comenta.

Alex Osoegawa, diretor executivo da Peers Consulting + Technology
Para Coelho, a alteração nos preços vai depender do tipo de produto. “Os medicamentos essenciais e os vendidos ao SUS ou hospitais filantrópicos terão alíquota zero, o que tende a manter ou até reduzir preços. Por outro lado, produtos que não estão nas listas da lei (como suplementos, vitaminas, cosméticos e produtos de perfumaria) podem ter aumentos e reduções da carga tributária. Esses produtos são os que mais preocupam o varejo”, alerta.
Vale dizer que a reforma prevê alíquota Zero para 383 medicamentos, incluindo vacinas, tratamentos oncológicos e doenças raras. “Além disso, 105 tipos de dispositivos médicos e 26 de acessibilidade terão 60% de redução. A isenção será aplicada por linhas de cuidado, não por nome específico do medicamento”, complementa Osoegawa.
Atenção ao fluxo de caixa
A reforma tributária pode causar impactos no fluxo de caixa das farmácias, tanto positivos quanto negativos, dependendo da gestão, conforme alerta o especialista da SimTax.
– Impactos negativos (início)
- Durante a adaptação, pode haver erros de parametrização e atraso no aproveitamento de créditos, o que afeta o caixa;
- As notas fiscais precisarão ser mais detalhadas, o que aumenta o cuidado com lançamentos e controles.
– Impactos positivos (depois de estabilizar)
- Com o crédito financeiro amplo, as farmácias vão recuperar mais rapidamente o imposto pago nas compras, o que melhora o capital de giro.
- O sistema será mais previsível, o que facilita planejar pagamentos e repasses.
“Uma dica é acompanhar a Demonstração do Resultado do Exercício (DRE) e o fluxo de caixa mensalmente, simulando os impactos do IBS e CBS por categoria de produto”, pontua.
Influência em estratégia de preços e negociação
Na opinião de Alex Osoegawa, a reforma influenciará profundamente as estratégias e negociações. A simplificação tributária e a redução de custos administrativos podem permitir, por exemplo, que as farmácias direcionem recursos para aprimorar estratégias. “Contudo, a reforma impactará a precificação dos medicamentos devido à nova carga tributária e exigirá planejamento conjunto entre a indústria e a logística para redefinir as estratégias comerciais e políticas de preços”, destaca.
Ele avalia que o Brasil, historicamente, tem uma das maiores cargas tributárias sobre medicamentos no mundo, com alíquotas que podem chegar a 33% do preço final, enquanto a média mundial é de cerca de 6%. “A reforma introduz um IVA dual (substitui diversos impostos e contribuições sobre o consumo por dois novos tributos), que é padrão internacional, e prevê reduções e isenções para alguns medicamentos, o que pode amenizar a carga”, comenta.
Reforma pode modernizar o setor
A reforma pode modernizar o setor farmacêutico e atrair investimentos ao simplificar o sistema tributário e reduzir custos administrativos, liberando recursos para inovação. “A unificação e simplificação dos tributos podem gerar novas oportunidades de recuperação de créditos, incentivando o investimento em tecnologia e aprimoramento da gestão”, diz Osoegawa. Além disso, a redução da carga tributária sobre medicamentos essenciais pode estimular a produção e o acesso.

Reginaldo Arcuri, presidente-executivo do Grupo FarmaBrasil
Para Reginaldo Arcuri, a reforma tributária vai fazer com que haja mais transparência e rapidez no processamento de impostos. “Para a indústria, haverá impactos na competitividade. Com a redução de custos e com ganhos de produtividade, ela poderá direcionar os investimentos para outras áreas, como a de produção”, comenta.
Risco de desequilíbrio
Segundo Jiovanni Coelho, existe risco de desequilíbrio entre medicamentos de referência, genéricos e similares e o motivo é classificação fiscal. Ele explica que a reforma define quais produtos terão alíquota reduzida ou zero com base no NCM (código fiscal) e na composição do produto.
Assim, se um laboratório classificar o produto de forma errada, pode perder o benefício e gerar um preço final diferente do concorrente. “No futuro, os medicamentos terão apenas um Preço Brasil e o imposto será destacado por fora. Então, para o cliente, o preço vai ser uma coisa, já o desembolso será outro valor, pois o imposto vai ficar por fora”, esclarece, dando um exemplo prático.
“Se o paracetamol de um fabricante estiver com o NCM correto e o do outro não, um será vendido com imposto reduzido e o outro não, criando diferença de preços no balcão. Por isso, revisar NCM e cadastro de produtos será essencial para manter equilíbrio no mercado”, argumenta.
Como se preparar para a Reforma?
As redes de farmácias e drogarias precisam se preparar para a transição e mitigar possíveis aumentos de custos. Para isso, Osoegawa orienta que as redes de farmácias foquem na preparação técnica e planejamento estratégico, incluindo a reavaliação da formação de preços, revisão da malha logística devido à tributação no destino, e adequação de contratos comerciais.
“É crucial investir em sistemas e tecnologia para operar com os novos regimes tributários e capacitar equipes fiscal, contábil e comercial para interpretar e aplicar as novas regras”, diz.
Coelho destaca que haverá mudanças com maior frequência e mudanças em todos os indicadores da empresa, como: Preço, Impostos, Custo Contábil, Custo Gerencial, Lucratividade, Margem, preço de venda, Modelos de lucratividade e mudanças de sistema.

Jiovanni Coelho, CEO da SimTax
“Basicamente aquele que não estudar e estar adaptado as mudanças corre grande risco no seu negócio, pois estamos mudando de modelo e o modelo atual vai sumir. Ou seja, o começo exige investimento e atenção, mas o resultado é mais controle e segurança tributária no futuro”, alerta.
Aliás, o ideal é começar o quanto antes. “As farmácias que se prepararem desde agora vão sentir menos impacto quando o novo sistema começar a valer”, comenta Coelho que cita alguns passos práticos:
- Atualizar o cadastro de produtos (NCM, registro Anvisa e categoria tributária).
- Separar medicamentos por tipo de benefício: normal, reduzido (60%) ou alíquota zero.
- Treinar o time contábil e fiscal sobre IBS e CBS.
- Revisar sistemas e ERPs, garantindo que estejam prontos para emitir notas no novo formato.
- Simular preços de venda e margens, considerando os novos tributos.
- Acompanhar o cronograma de transição, que começa com uma fase de teste em 2026.
“A reforma tributária é inevitável e transformadora. Para o setor farmacêutico, ela traz benefícios importantes, como isenções e créditos mais claros, mas também exige preparo e gestão ativa. As farmácias que se anteciparem, revisarem seus cadastros e simularem seus cenários terão vantagem competitiva e passarão pela transição com segurança e previsibilidade”, finaliza Coelho.
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