Crise dos opioides nos EUA coloca Purdue Phrama na justiça

Entenda melhor a crise dos opioides nos Estados Unidos e como poderá afetar o Brasil

Os EUA enfrentam a chamada “crise dos opioides”, medicamentos vendidos em farmácias, mas que podem gerar dependência química e até são usados para uso recreativo e sem prescrição médica. Como resultado, a Purdue Phrama foi uma das principais empresas processadas judicialmente por sua responsabilidade nesta crise.

A Suprema Corte dos Estados Unidos bloqueou temporariamente um acordo de falência proposto para a Purdue Pharma. Esse acordo teria protegido os membros da família bilionária Sackler, que antes controlava a empresa, de futuras ações civis relacionadas à epidemia de opioides. A responsabilidade pessoal dos Sacklers teria sido limitada a 6 bilhões de dólares.

Segundo informações do NYT, essa mais recente ordem deve atrasar qualquer pagamento para os milhares de demandantes que processaram os Sacklers e a Purdue, fabricante do analgésico OxyContin, frequentemente apontado como responsável pela crise dos opioides. No acordo, os Sacklers haviam concordado em pagar bilhões aos demandantes em troca de total imunidade de disputas legais civis.

As leis recentemente aprovadas em diversos Estados são motivadas pelo fentanil, um opioide sintético extremamente letal que está no centro da epidemia de overdoses fatais que vem devastando o país.

O CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde) estima que mais de 110 mil pessoas morreram por overdose de drogas no ano passado. Entre essas mortes, cerca de 75 mil foram provocadas por fentanil.

Diante dessa crise, projetos de lei aumentando as penas mínimas para crimes relacionados ao fentanil já foram introduzidos em pelo menos 46 dos 50 Estados americanos somente neste ano.

Também vem crescendo o número de Estados com as chamadas “leis de homicídio induzido por drogas”, nas quais uma pessoa responsável pela distribuição de fentanil resultante em morte por overdose é processada por homicídio, mesmo que seja um usuário compartilhando a droga com amigos.

No nível federal, uma proposta apresentada ao Senado em fevereiro, e ainda em tramitação, enquadra como crime de homicídio “a distribuição de fentanil que resultar em óbito”, sujeitando os responsáveis à pena de morte ou prisão perpétua.

Em 2022, procuradores-gerais de 18 Estados enviaram carta ao presidente Joe Biden pedindo que o fentanil fosse declarado “arma de destruição em massa”.

“(Somente) no ano passado, foi apreendida uma quantidade suficiente de fentanil para matar todos os homens, mulheres e crianças nos Estados Unidos várias vezes”, diz o texto.

Em um país historicamente dividido, muitas dessas propostas chamam a atenção por atrair apoio tanto de políticos republicanos quanto de democratas, e apesar de nem todas terem sido aprovadas, várias passaram com unanimidade.

As leis também costumam ter o apoio de famílias que perderam filhos por overdoses de fentanil e se mobilizam por justiça e por medidas mais duras.

Mas críticos consideram essas leis um retorno às táticas de décadas anteriores, especialmente na epidemia de crack, quando usuários e traficantes de pequeno porte foram punidos com longas sentenças, sem que o problema fosse solucionado.

Efeitos daquela era persistem até hoje, na enorme população carcerária, de cerca de 1,9 milhão de presos, e em disparidades raciais, com a punição desproporcional de pessoas negras.

“A emergência do fentanil é, de muitas maneiras, um sintoma do fracasso da guerra às drogas. Mas, ironicamente, seu surgimento começou a estimular tipos semelhantes de abordagens, devido a uma espécie de pânico em relação ao fentanil”, diz à BBC News Brasil o especialista em drogas e saúde pública Leo Beletsky, professor de direito e ciências da saúde na Northeastern University.

“No mercado de drogas ilícitas, quanto mais pressão (polícia e sistema legal) aplicam, mais compactas e poderosas ficam as drogas”, afirma Beletsky.

“O incentivo econômico natural é passar para drogas com menor volume e maior impacto. Se você vai transportar (ilegalmente) 1 kg de algum produto pela fronteira, é muito mais lucrativo transportar 1 kg de fentanil do que de heroína.”

Pedido de falência

A ordem foi uma resposta à objeção do Departamento de Justiça ao plano, no qual o governo afirmou que o acordo permitia que membros da família Sackler se beneficiassem de proteções legais destinadas a devedores em “dificuldades financeiras”, e não a bilionários.

Os juízes informaram que ouvirão os argumentos em dezembro para decidir se o acordo é autorizado pelo código de falências dos EUA. A decisão poderá ter implicações significativas para ações judiciais semelhantes. Isso porque o acordo da Purdue envolve uma prática popular, mas controversa: resolver processos sobre lesões em massa através dos tribunais de falência, ao invés de deixar os casos seguirem o sistema judiciário tradicional.

Lindsey Simon, professora associada da Emory University School of Law, questionou: “O que os Sacklers estão ganhando com isso?”. Ela acrescentou que eles recebem todos os benefícios sem nenhum dos custos. Um representante da família Sackler não fez comentários ao NYT, enquanto uma porta-voz da Purdue Pharma afirmou que a empresa estava “confiante na legalidade” do plano de falência.

A decisão do tribunal de analisar o caso aumenta a incerteza em torno do plano de compensar estados, governos locais, tribos e indivíduos afetados pela crise dos opioides, oferecendo ao mesmo tempo proteção à família Sackler. Os demandantes provavelmente terão que esperar pelo menos mais um ano antes de receberem pagamentos do acordo da Purdue.

O caso também pode afetar a forma como outros casos de delito em massa são tratados. Adam Zimmerman, professor de direito na Universidade do Sul da Califórnia, comentou que o tribunal está abordando uma questão que é a base para bilhões de dólares em delitos em massa, que envolvem não apenas os opioides, mas também outros casos de grande envergadura.

Como o Brasil é afetado?

Segundo o anestesiologista e algologista Guilherme Antonio Moreira de Barros, professor da Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP e Vice-Diretor de Relações Internacionais da SESP, a maior diferença está nas doses de opioides utilizadas nos dois países. “No Brasil, o tratamento sempre é feito com uso de doses conservadoras e com, obrigatoriamente, uma analgesia multimodal associada, ou seja, o uso de outros medicamentos, que colaboram com a redução da necessidade do uso e das doses empregadas de opioides. Situação bem diferente nos Estados Unidos, onde doses bem mais liberais são empregadas, além do uso em situações que não utilizamos”, diz.

“Por exemplo, no pós-operatório de extração dentária no Brasil, é muito raro alguém usar algum opioide fraco, mas, nos Estados Unidos, é muito comum que opioides potentes, como a oxicodona, sejam prescritos para esses pacientes”, explica.

Outra diferença citada pelo médico, é o sistema de pagamento dos profissionais. “Nos Estados Unidos, o valor que o profissional recebe pelo atendimento varia, significativamente, de acordo com grau de satisfação que o paciente tem com o médico. Então, para evitar pontuações baixas, os médicos têm uma tendência natural a prescrever o que os pacientes pedem ou a diminuir ao máximo o risco de que o paciente tenha dor no pós-operatório, por exemplo. Por isso, o uso de opioides é feito de maneira muito mais liberal do que acontece no Brasil”, completa.

E, por último, Barros ressalta a diferença de preços entre os dois países. Levando em consideração o poder aquisitivo da população, no Brasil os opioides são bem mais caros em relação aos Estados Unidos.

Sobre os opioides, em si, diferente do que a maioria das pessoas pensa, os efeitos disforizantes são desagradáveis para a maior parte da população que, eventualmente, seja exposta ao uso de opioides. Em outras palavras, apenas uma parcela pequena de pacientes gosta dos efeitos produzidos por essas substâncias. Conforme explica o médico, “são indivíduos com fatores genéticos pré-determinantes, que aumentam o risco se tornar um usuário crônico de psicotrópicos, incluindo álcool, tabaco e outros medicamentos, como por exemplo benzodiazepínicos, que são os pacientes de risco para o abuso ou que gostam dos efeitos disforizantes dos opioides”.

Barros afirma que há dados mostrando que, no Brasil, temos um número pequeno de pacientes ou de indivíduos, da população em geral, que são viciados em opioides. “Há outras drogas ilícitas no Brasil, que têm um papel muito mais importante na epidemiologia do abuso de substâncias, por exemplo, a cocaína e o crack, que, como sabemos, têm maiores consequências sociais na nossa realidade. Diferente do que acontece nos Estados Unidos, onde além dessas substâncias, a metanfetamina e, em particular, a heroína e o fentanil também estão bem presentes na sociedade”, complementa.

Tendo em vista esses cenários, qual é o caminho para diminuir o problema do uso de opioides?

Barros esclarece que temos que pensar que existem duas crises diferentes. “Uma é a crise americana, especificamente da superutilização, do abuso e das mortes induzidas por overdose. Nós não temos uma crise de opioides, porque basta ver o consumo per capita brasileiro, que é muito inferior do que acontece na Europa, onde se considera não existir crise de opioides. Na nossa realidade, nós temos outra crise que é a subutilização. Muitos pacientes continuam sentindo dor significativa, pela baixa prescrição dos opioides por parte dos médicos. Os profissionais sofrem com o enorme receio da prescrição, devido à crise americana. Então, eu não acho que temos que tomar medidas para diminuir a utilização dos opioides no país. Temos que lutar por condutas que passam pela educação dos médicos e da população em geral, para que estes prescrevam e utilizem de maneira adequada os opioides”.

Mas o que significa uma utilização adequada? O médico responde que “significa a utilização de opioides na menor dose, no menor tempo possível e sempre em um esquema multimodal, que contemple outras classes de medicamentos analgésicos. Mas, que também sejam utilizadas outras terapias complementares de analgesia, como a fisioterapia e outras técnicas complementares, como a acupuntura e a psicoterapia”.

Nesse tratamento multimodal, o anestesiologista tem um papel importantíssimo no tratamento da dor. “Sabemos que a utilização indiscriminada de opioides aumenta o risco do paciente se tornar um usuário crônico para fins recreativos. Por outro lado, o subtratamento da dor também expõe o paciente ao risco de automedicação desses analgésicos. Então, o anestesiologista, que entre as especialidades médicas é aquele que melhor conhece o emprego e a farmacologia dos opioides, deve tratar adequadamente os pacientes, especialmente no período perioperatório, na intenção de evitar o risco do desenvolvimento de dor crônica. E também deve empregar, sempre que possível, a analgesia multimodal, que nós, anestesiologistas, conhecemos muito bem”, finaliza.

Venda de opioides cresce 465% no Brasil

Fontes: Guia da Farmácia com informações do Olhar Digital e BBC

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