Perigo da liberação da pílula do câncer

Aprovar medicamentos sem estudos clínicos de eficácia e segurança é, pois, um absurdo. É uma medida que ameaça a saúde da população brasileira

A que ponto chegamos. Passando por cima de um sistema de validação clínica e controle sanitário árduo e competentemente construído ao longo de décadas, o governo sancionou a lei que autoriza o uso da substância fosfoetanolamina sintética, conhecida como “pílula do câncer”, no tratamento de tumores malignos.

Com isso, com uma única canetada, tornou letra morta todo o modelo de pesquisa, teste e registro de medicamentos criado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), de acordo com os melhores critérios científicos adotados internacionalmente.

E pior, cometeu um verdadeiro crime contra a saúde pública, tipificado no inciso 1º, parágrafo 1º B, do artigo 273 do Código Penal Brasileiro, que enquadra nesta categoria quem oferece medicamentos e insumos farmacêuticos “sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente”. 

Entende-se o sofrimento e a natural mobilização das famílias dos pacientes. Entende-se a ânsia, o clamor popular pela descoberta de um medicamento que cure o câncer de uma vez por todas – sonho e objetivo que é de todos nós. Entende-se, até, o voluntarismo bem-intencionado daqueles que, por razões humanitárias, defendem o uso compassivo da substância, diante da circunstância de não haver mais alternativas de tratamento tradicional. 

Mas quando a saúde está em jogo, nenhum cálculo de natureza política (ou marqueteira) pode se sobrepor aos critérios médicos, científicos e técnicos que devem ser seguidos, obrigatoriamente, no processo de análise de todo e qualquer princípio ativo com propriedades terapêuticas.

A indústria farmacêutica, no Brasil e no mundo, defende e zela pelo estrito cumprimento das regras que orientam a pesquisa e o desenvolvimento, os testes clínicos em seres humanos que precedem a aprovação de medicamentos e seu posterior consumo pela população. Porque sabe da importância desse protocolo.

Para dar conta dessa tarefa complexa e demorada, a indústria farmacêutica envolve dezenas de milhares de profissionais – cientistas, médicos, farmacêuticos, químicos, engenheiros – e realiza altos investimentos.

Trata-se de um compromisso fundamental, sem ele não se pode garantir a qualidade final dos produtos.

Por mais delicada que seja a questão do combate ao câncer, do cuidado dispensado aos pacientes desta doença de larga incidência em escala global, um governante não pode alimentar falsas esperanças. Falando francamente, um governo que se dá ao respeito não pode enganar as pessoas.

Se a fosfoetanolamina tem, de fato, propriedades curativas, que a substância passe por todas as etapas do processo de registro de medicamentos vigente no País. Nem mais, nem menos.

Como bem destacou a Anvisa, ao se pronunciar sobre a questão, “liberar medicamentos que não passaram pelo devido crivo técnico seria colocar em risco a saúde da população e retirar a credibilidade da Anvisa e dos próprios medicamentos fabricados em nosso País”. 

Não sejamos simplistas, “se bem não faz, mal não fará”. No caso em pauta, fará mal, pois, infelizmente, o Congresso Nacional atropelou e matou a Anvisa, e a Presidência da República patrocinou um funeral populista. 

Esperança Ilusória

Edição 283 - 2016-06-01 Esperança Ilusória

Essa matéria faz parte da Edição 283 da Revista Guia da Farmácia.

Sobre o colunista

Presidente executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos no Estado de São Paulo (Sindusfarma).

Deixe um comentário