As bulas de medicamentos estão entrando em uma nova era, que inclui informações disponibilizadas via QR Code e, quem sabe no futuro, serem digitais. A discussão é complexa e envolve desde o descarte de papel até a falta de acesso à internet e outras tecnologias por uma parte ainda considerável da população.
De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a elaboração, harmonização e disponibilização das bulas de medicamentos é um tema regulamentado pela Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 47/2009.
Essa norma passou por alterações pontuais no fim de 2022 em relação aos seguintes pontos: a) permitir que a bula seja disponibilizada também por meio de um código bidimensional impresso nas embalagens dos medicamentos; e b) adequar a quantidade de bulas para os Medicamentos Isentos de Prescrição (MIPs) e para os medicamentos de uso contínuo dispensados para o paciente na embalagem primária, acondicionada em embalagens múltiplas.
Uso do papel
Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira da Indústria de Produtos para o Autocuidado em Saúde (Acessa) e pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) demonstrou que dos consumidores brasileiros entrevistados e observados nas farmácias, apenas 1% solicitou a bula de MIP disponibilizada diretamente na embalagem primária.
Ainda segundo a pesquisa, apenas para os dez MIPs mais vendidos diretamente na embalagem primária, eram enviadas mais de 1 bilhão de bulas às farmácias anualmente, havendo um grande volume de descarte de papel não utilizado: em torno de 650 toneladas de papel/ano.
No caso dos medicamentos de uso contínuo dispensados diretamente na embalagem primária, a norma previa que deveriam ser enviadas para o serviço de saúde bulas suficientes, considerando a dispensação para 30 dias de tratamento.
Contudo, um levantamento encaminhado à Anvisa pela Fundação para o Remédio Popular (FURP) indicou que, em um estudo de caso de 50 dispensações para três medicamentos, pode ser verificada sobra de bulas de 54,6% para o captopril, 64% para o haloperidol e 76,6% para a fenitoína.
A sobra de bulas decorria do fato de que, na dispensação nos postos de saúde, os pacientes recebem em média medicamentos suficientes para até seis meses de tratamento acompanhado de uma bula, sendo as demais descartadas sem utilização. Ou seja, para cada dispensação, em média, era entregue uma bula e descartadas cinco
Para a especialista em Assuntos Regulatórios da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina), Marina Moreira, a RDC 47/2009 é
Pontos em debate
Para a especialista em Assuntos Regulatórios da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina), Marina Moreira, a proposta da Anvisa parece salutar, na medida em que adviria em atendimento aos anseios dos players produtores de genéricos e similares e, promoveria, em tese, uma salvaguarda contra eventuais alegações de contrafação, dado que o uso terapêutico protegido por patente não estaria presente na bula do medicamento genérico ou similar.
“Além disso, a alteração em questão manteria a disponibilização dos produtos ora citados mesmo na eventualidade de haver bulas diferentes, trazendo benefícios para a saúde pública brasileira. Com a exigência atual de que as bulas sejam iguais aos medicamentos de referência, os produtores de genéricos ficam defasados e sujeitos a processos judiciais”, diz.
A Abifina entende que as informações fluirão de forma mais fáceis para o cidadão, profissionais de saúde e o controle será desburocratizado. “Pela Lei, as bulas digitais – que não vão extinguir as versões impressas – deverão ter conteúdo completo e atualizado, formato de fácil leitura e compreensão e aplicativo para converter o texto em áudio ou vídeo. Diversos estudos comprovam que a educação em saúde perpassa por acesso a ferramentas de uso correto de medicamentos, e facilitar este acesso à população será muito benéfico”, declara Marina.
A Anvisa reforça que, atualmente, a inclusão do mecanismo digital para acesso às bulas não excluiu a necessidade da bula impressa nos medicamentos dispensados na embalagem secundária (embalagem externa do produto, que está em contato com a embalagem primária ou envoltório intermediário, podendo conter uma ou mais embalagens primárias). A mudança trazida pelo arcabouço regulatório atual aumentará o acesso do paciente às bulas, que também passarão a ser disponibilizadas no formato digital.
Por dentro da tecnologia
Segundo o executivo do setor de saúde da Associação Brasileira de Automação-GS1 Brasil, Ricardo Amaral, as bulas digitais são vistas hoje como uma grande ferramenta para a inclusão. “Permitem que seu conteúdo seja transformado em modelos acessíveis, o que atende a requisitos de cidadãos com necessidades especiais – garante o acesso à informação. O papel do QR Code é justamente levar o médico, paciente, profissional ou consumidor ao local da informação, conectar o medicamento no mundo físico com sua bula no mundo digital, de maneira simples, rápida e segura”, esclarece.
Uma simples leitura do código permite o acesso à conversão do texto em voz ou linguagem de sinais e pode facilitar o acesso a informações específicas como posologia. Segundo Amaral, as alterações impostas pela Lei 14.338, de 11 de maio de 2022, a versão digital da bula deve minimamente apresentar o “conteúdo completo e atualizado, idêntico ao da bula impressa”, “formato que facilite a leitura e a compreensão”, além da “possibilidade de conversão do texto em áudio e/ou vídeo mediante o uso de aplicativo adequado”.
O especialista da GS1 Brasil destaca que os QR Codes “carregam”, dentro de si, um endereço para o site onde a versão digital da bula está hospedada, algo que parece um mero detalhe. Mas quando não feito de maneira padronizada, distribuidores e farmácias perdem a oportunidade de utilizar esses códigos para processos de recebimento, separação e despacho.
“Na frente de caixa, um QR Code mal formatado pode levar a uma falha de operação, erro na venda e estragar a experiência do cliente, que pode ter a falsa impressão de que o problema está no caixa da loja e não no código do produto”, alerta.
Amaral afirma que aplicativos, leitores de tela, utilizados por deficientes visuais, ferramentas para gestão e plataformas de saúde ou que possam alertar o paciente sobre riscos relacionados à administração daquele medicamento, como recall ou alergênicos, também são deixados de fora. “A falta de padrão pode tornar o produto menos desejável num momento de comparação. Deixo o alerta para buscarem as melhores práticas no desenvolvimento dos ambientes que hospedam essas bulas e, principalmente, as embalagens dos medicamentos. Características, como o tamanho dos códigos, posicionamento na embalagem, um erro na escolha das cores, como vermelho e seus tons, podem inviabilizar a leitura dos QR Codes. Domínio web sob controle da empresa e conteúdo atualizável são outras boas práticas. Envolvam times de TI, embalagem e operações, além dos parceiros comerciais, no desenvolvimento”, aconselha.
Defesa do impresso
O presidente da Associação Brasileira da Indústria Gráfica (Abigraf Nacional), Sidney Anversa, tem uma posição contrária à digitalização das bulas e defende que sem a bula impressa, pessoas mais carentes e com dificuldades de acesso à internet por meio do QR Code da embalagem irão se dirigir às farmácias solicitando orientações verbais sobre posologia, contraindicações e efeitos adversos, entre outras diversas e possíveis questões, atribuindo aos profissionais do estabelecimento farmacêutico uma responsabilidade que em determinadas situações eram respaldadas pela bula impressa.
“Primeiramente, há de se perguntar se toda a população brasileira possui um aparelho celular inteligente, capaz de ler um sistema de captura, armazenamento e transmissão eletrônica de dados e, também, se há acesso à internet sem restrições e interrupções de sinal em todo o território nacional”, questiona.
Ainda segundo ele, outra questão que deve ser considerada é a falta de conhecimento tecnológico de grande parte da população para acessar a bula digital, podendo causar ao consumidor final (paciente) inúmeros problemas diante de tais dificuldades, uma vez que deixaria de consultar as imprescindíveis informações contidas naquele documento e, desta forma, fazer o uso indevido ou errôneo do medicamento. “O Brasil certamente não está preparado para o fim da obrigatoriedade da bula impressa nos medicamentos, seja pela condição estrutural da falta de acesso universal à internet, econômica, cultural e de falta de informação pela população”, acrescenta.
Guia da Farmácia: edição de junho mostra advento da bula digital
Fonte: Guia da Farmácia
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