Cannabis medicinal: demanda no Brasil cresceu 9.311% desde autorização

São Paulo se juntou à lista de localidades que contam com legislações próprias para incluir no Sistema Único de Saúde (SUS) o acesso à cannabis medicinal

Nesta semana, São Paulo se juntou à lista de localidades que contam com legislações próprias para incluir no Sistema Único de Saúde (SUS) o acesso à cannabis medicinal – medicamentos à base de canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC), duas das cerca de 500 substâncias da planta Cannabis sativa. Hoje, os produtos do tipo estão disponíveis no país majoritariamente por meios privados.

A sanção da nova lei, que ainda precisa ser regulamentada, reacendeu a discussão sobre a modalidade terapêutica no país. Especialistas apontam que, apesar das evidências científicas e de um aumento expressivo da demanda nos últimos sete anos, ainda há desafios no acesso e no conhecimento dos médicos para receitar os óleos.

De acordo com dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foram concedidas 850 autorizações para importação de medicamentos em 2015 – ano em que a prática passou a ser permitida no Brasil. Desde então, esse número cresceu 9311%, e chegou ao total de 79.995 novos pacientes autorizados em 2022, quase o dobro do ano anterior, quando foram 40.070 liberações.

Em sete anos, autorizações para importação de cannabis medicinal cresceram 9.311% no Brasil
Apenas em um ano, número de concessões dobrou e chegou a 80 mil em 2022

Fonte: Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)

Regulações

Nesse tempo, as formas de acesso têm caminhado, porém a passos lentos. Emilio Figueiredo, advogado da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Rede Reforma), explica que ele ainda é feito majoritariamente pela importação do próprio paciente.

“A lei hoje cria duas formas de acesso à cannabis medicinal. A primeira é via produto importado, como estabeleceu a resolução da Anvisa em 2015, em que o próprio paciente precisa fazer o procedimento. Há uma ampla lista de produtos autorizados, que é atualizada periodicamente. E existe uma outra resolução da Anvisa, de 2019, que passou a permitir que distribuidoras importem em estoque e disponibilizem em farmácias. Existem mais de 20 autorizados, mas ainda são escassos”, diz o especialista.

Allan Paiotti, ex-diretor do Hospital Oswaldo Cruz e CEO da Cannect, startup especializada em cannabis medicinal, afirma que os principais motivos para essa ausência é o valor alto para disponibilizá-los nas drogarias.

“Quase 100% do mercado hoje é de importação individual. Esse canal da farmácia leva tempo para maturar no país, porque é muito custoso para a farmacêutica vender o produto numa rede grande de drogarias enquanto o volume de prescrições pelo médico ainda é baixo.”

Isso faz com que sejam poucas e caras as ofertas dos produtos com CBD e THC em farmácias brasileiras, o que leva os próprios pacientes a optarem pela importação, um processo de entrega que leva de 10 a 15 dias.

Para isso, primeiro, o médico prescreve o medicamento ao paciente, com uma receita controlada azul. Depois, é o próprio paciente quem precisa dar entrada na Anvisa para que seja concedida uma autorização para importação. Em seguida, com a receita e o aval da agência, ele pode fazer um pedido com uma empresa que traga o produto de fora.

Isso tem motivado a criação de startups como a Cannect, que conectam médicos, pacientes e importadores. Em menos de dois anos, a empresa já conta com 4 mil médicos cadastrados. No ano passado, atendeu quase 8 mil pacientes. Na plataforma, eles têm acesso à consulta com o profissional, recebem a receita, se for o caso, e um suporte para solicitar o aval com a Anvisa.

Além disso, a própria Cannect oferece mais de 800 produtos para importação, enquanto somente cerca de 25 são autorizados nas farmácias do Brasil.

Acesso da cannabis medicinal por famílias de baixa renda

No entanto, mesmo importado, o preço é elevado e pode variar de centenas a milhares de reais o frasco, a depender da concentração do CBD e do THC. Um dos motivos é porque os poucos laboratórios que podem fabricar o produto no Brasil, como o Prati-Donaduzzi, no Paraná, precisam importar o Insumo Farmacêutico Ativo (IFA), uma vez que o plantio da Cannabis sativa é proibido no Brasil, ainda que para fins medicinais.

“O que é um erro, porque nós temos capacidade de produzir os produtos aqui, poderíamos estar mais avançados nesse sentido. Nosso país está muito atrasado se levarmos em consideração lugares próximos, como Argentina, Chile e Uruguai”, avalia Eliane Nunes, psiquiatra e diretora da Sociedade Brasileira de Estudo da Cannabis Sativa (SBEC).

Rodrigues, da Rede Reforma, explica que uma das formas que famílias de baixa renda têm encontrado para contornar o entrave do preço é conseguir, por meio de uma decisão judicial, o acesso via SUS ou custeado pelo plano de saúde. Outra maneira dentro da lei é por habeas corpus que dão o direito ao plantio da Cannabis com fins terapêuticos. Hoje cerca de cinco associações têm autorização judicial para o plantio no Brasil, em cidades como Rio (Apepi e Canapse) e São Paulo (Cultive).

“Nós produzimos aqui mesmo o óleo em Campina Grande, João Pessoa, envasamos e distribuímos para cerca de 40 mil famílias. Tem sido um sucesso”, conta Cassiano Gomes, fundador e diretor-executivo da Associação Brasileira de Apoio para Cannabis (Abrace Esperança).

Essas dificuldades têm levado ao crescimento de leis que buscam garantir o acesso pelo SUS, a exemplo da sancionada recentemente em São Paulo. Há legislações semelhantes em outras unidades federativas, como o Distrito Federal, e em cidades como Búzios.

“O problema é que essas leis não têm se traduzido em um real acesso porque há uma incoerência entre a legislação e o que é regulamentado pela Anvisa. Muitas vezes a lei determina como medicamentos, mas na Anvisa a cannabis medicinal entra numa categoria regulatória própria, chamada de “produtos de cannabis”. Por isso, em São Paulo, já há um trabalho na secretaria de saúde para criar uma regulamentação que não caia nesses mesmos erros”, afirma Emilio, da Rede Reforma.

O especialista, assim como outros ouvidos pela reportagem, acredita que as leis são um bom sinal, porém defende que ocorra uma movimentação em âmbito nacional, o que seria mais efetivo.

“Na Câmara dos Deputados existe um projeto de lei que já chegou a ser aprovado, mas hoje é alvo de recurso e não seguiu ainda para o Senado Federal. Esse recurso ainda não foi julgado, está há quase um ano e meio em espera. Esse seria o ideal, algo nacional, mas é muito interessante ver as leis locais porque mostra a sensibilidade do poder público em relação ao tema e a demanda da população. Cinco anos atrás falar em lei obrigando o Estado a garantir cannabis medicinal era algo impensável”, acrescenta.

A Fiocruz chegou a firmar, em 2020, um acordo com o Prati-Donaduzzi para transferência de tecnologia. A ideia era fabricar o CBD na fundação e fornecê-lo ao SUS. Mas, na época, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) recomendou que os medicamentos não fossem incorporados na rede pública.
Preconceito persiste, mas ciência avança

Cannabis medicinal: estigmas

Muitos dos estigmas que envolvem o debate da cannabis medicinal são pela constante confusão entre as substâncias terapêuticas da planta e a maconha, droga que é feita também a partir da Cannabis sativa.

“Acaba que a indicação pelos médicos não é muito comum porque ainda existe muito preconceito em relação ao uso do canabidiol, justamente por essa confusão. Mas isso tem mudado nos últimos anos, acredito que com as as recentes evidências e também com a própria autorização da Anvisa. Os profissionais têm estudado mais sobre”, diz Elisa Resende, vice-coordenadora do departamento científico de Neurologia Cognitiva da Academia Brasileira de Neurologia (ABN).

Embora o THC, um dos canabinoides autorizados, de fato seja responsável pelo efeito psicoativo, isso ocorre apenas em quantidades superiores às autorizadas pela Anvisa, que estabelece um teor máximo de 0,2%. Ela apenas é permitida em uma concentração maior em casos específicos de cuidados paliativos de pacientes sem alternativas terapêuticas e em situações clínicas irreversíveis ou terminais.

Além disso, o THC e o CBD já foram comprovados como eficazes para uma série de doenças. Embora não sejam curas, atuam para aliviar os sintomas e mantê-los sob controle.

“Hoje os usos mais comuns são para os pacientes com epilepsia, principalmente as refratárias (resistentes aos medicamentos), com distúrbios neurológicos, como a esclerose múltipla, e em cuidados paliativos. Para todas essas patologias temos revisões científicas que validam o uso”, diz Eliane, da SBEC.

O potencial é especialmente alto para as epilepsias infantis provocadas pelas síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut. Uma revisão de literatura publicada na revista científica Scientific Reports mostrou que o CBD reduz em até 50% as crises de epilepsia nas crianças com Dravet.

As evidências são fortes também para o alívio de sintomas de dores crônicas, de náuseas e vômitos provocados pelo tratamento do câncer, de espasticidade – aumento involuntário da contração muscular característico da esclerose múltipla – e para tratar distúrbios do sono.

Embora os dados sobre eficácia sejam mais limitados, os canabinoides também são muito utilizados para controle de demências, como o Alzheimer, do Parkinson, da fibromialgia, do glaucoma, do autismo e de transtornos de saúde mental. Os especialistas explicam que os benefícios acontecem porque essas substâncias se ligam a receptores de um sistema do corpo chamado de endocanabinoide.

“Cerca de 40 anos atrás, foi descoberto esse sistema que atua na regulação de outros sistemas do corpo. Posteriormente, descobrimos que nós mesmos produzimos substâncias chamadas endocanabinoides de forma endógena que interagem com esse sistema. O exercício físico, por exemplo, estimula a produção dessas substâncias. E os canabinoides presentes da planta interagem diretamente com os receptores desse sistema”, explica Ailane Araújo, diretora e fundadora do Centro Brasileiro de Referência em Medicina Canabinoide (CBRMC) e do Núcleo de Desenvolvimento em Medicina Canabinoide e Integrativa (NDMCI).

Para contornar o preconceito no âmbito médico, ela defende que o tema tenha um foco maior em palestras e cursos destinados aos profissionais da saúde, além de fazer parte do percurso educacional dos médicos brasileiros.

“A falta de conhecimento acaba prejudicando toda uma população que poderia estar se beneficiando da cannabis terapêutica. Nós não podemos mais fugir disso, precisamos levar para as instituições de ensino, que se torne uma cadeira nas universidades, para que os médicos consigam tratar os pacientes de uma forma assertiva. Tem pacientes que precisam mais de THC, outros de CBD, alguns em que há restrição no uso de um deles, então o profissional da saúde precisa estar capacitado para isso”, afirma a especialista, que ministra um curso de especialização em cannabis medicinal na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

São Paulo terá medicamento à base de cannabis no SUS

Fonte: Globo Online

Foto: Shutterstock

 

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