Evolução notável

A plena ascensão dos medicamentos fitoterápicos no Brasil esbarra na desinformação, burocracia e dificuldade de acesso ao patrimônio genético da flora nacional

Há muito tempo as plantas medicinais são utilizadas como recurso terapêutico para intervir no processo saúde/doença em diferentes sociedades, tanto pela população em geral, quanto por profissionais especializados. A mais antiga referência conhecida sobre o uso da flora data de mais de 60 mil anos. Na China, por volta de 3000 a.C., já se sistematizava a utilização de plantas para a cura de doenças. Época em que se tornaram conhecidas as propriedades do ginseng e da cânfora.

No antigo Egito, também se usavam plantas como medicamento, e na Grécia, seu valor terapêutico ou tóxico ganhou muitos estudos. O “Pai da Medicina” Hipócrates (460-377 a.C.), em sua obra Corpus Hipocratium, compêndio dos conhecimentos médicos de seu tempo, dedicou vários tópicos para tratamento de doenças à base de plantas. E ao longo dos séculos, a fitoterapia ganhou adeptos e aperfeiçoamento, sendo que seu auge ocorreu a partir do século 19, graças ao progresso científico na área da química, permitindo a análise, identificação e separação dos princípios ativos das plantas.

Auge contemporâneo

“Esquecidos” em sua forma natural por um tempo, por conta do boom dos medicamentos sintéticos, os fitoterápicos voltaram à tona nas últimas décadas, principalmente pelo interesse das pessoas por maior qualidade de vida e prevenção de doenças.

“A busca por terapêuticas menos agressivas e hábitos de vida mais saudáveis tendem a ampliar o número de consumidores do segmento que, a cada ano, buscam por mais produtos inovadores e sustentáveis”, afirma o gerente de produtos Over the Count (OTC) da Herbarium, Eduardo Cristiano P. de Oliveira.

“Os medicamentos fitoterápicos evoluíram bastante nos últimos anos, pois dependendo do tipo e indicação terapêutica, os testes necessários para a sua aprovação no que se refere à qualidade, segurança e eficácia são praticamente os mesmos exigidos para os medicamentos sintéticos, tornando-os bastante seguros e eficazes”, sublinha o pesquisador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Ricardo Tabach.

Entre as novidades, o pesquisador destaca o uso medicinal de derivados da cannabis, aceito recentemente pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “A pesquisa de novas moléculas é objetivo da maioria das indústrias farmacêuticas e dos grandes centros de pesquisa localizados nos Estados Unidos e na Europa”, acrescenta o professor do curso de Farmácia do Centro Universitário São Camilo, Alexsandro Macedo Silva.

Atualmente, perto de 80% da população europeia consome medicamento fitoterápico, assim como mais de 40% da dos países asiáticos. A responsável pelo Departamento de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da Marjan Farma, Rita de Cássia Salhani Ferrari, citando dados do IMS Health dos últimos dois anos, revela que o mercado mundial de medicamentos sintéticos cresceu, em média, 4% ao ano, versus 15% dos medicamentos fitoterápicos.

Já a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, em 2050, o mercado global de fitoterápicos atingirá US$ 5 trilhões. No Brasil, apesar do crescimento expressivo dos últimos anos, estima-se que apenas 10% das pessoas consumam esse tipo de produto regularmente. Em parte isso se explica pelo fato de o mercado brasileiro de fitoterápicos ainda ser recente em comparação aos europeus e asiáticos. Outro fator importante é que as prescrições médicas desses compostos ainda são inferiores às dos países desenvolvidos.

Qualidade e informação

Um passo importante para consolidar a credibilidade dos fitoterápicos já foi dado, que é a regulação. “No Brasil, houve avanço na preocupação, tanto das empresas como das agências reguladoras, em produzir medicamentos fitoterápicos cientificamente validados, ou seja, oferecer para a população produtos com sua eficácia cientificamente comprovada”, afirma a coordenadora de pesquisa da Amazônia Fitomedicamentos, Denise Mollica Marotta.

Em termos de regulação, o Brasil alcança nível internacional. Segundo a Anvisa, o País atualmente está alinhado com as tendências mais modernas em termos de regulamentação de medicamentos fitoterápicos, sendo sua legislação baseada principalmente no modelo europeu, considerado o mais avançado na área. Em 2014, a Agência publicou a RDC 26, com novas regras para o registro e notificação de medicamentos fitoterápicos. “Creio que essa norma representa um grande avanço para a indústria farmacêutica e aproxima o Brasil de ações desenvolvidas na Alemanha, por exemplo”, afirma o membro do Grupo de Práticas Integrativas e Complementares do Conselho Federal de Farmácia (CFF), Nilton Luz Netto Junior.

Chama atenção nessa nova regra, segundo o especialista, a criação da categoria de produto tradicional fitoterápico, um novo segmento onde se encaixam os extratos vegetais de uso tradicional e comprovado no País. Se a indústria optar por registrar ou notificar um produto por essa nova categoria, poderá considerar o uso tradicional da planta medicinal como critério de eficácia, ou seja, não será necessária a realização de estudos clínicos, desde que seja comprovado o uso seguro e efetivo para um período mínimo de 30 anos, revela Netto Junior.

“Considero que, para os próximos anos, essa possibilidade favorecerá o surgimento de novos produtos em benefício do bem-estar individual e coletivo, sobretudo, a partir da biodiversidade brasileira”, acredita Netto Junior. “Nos últimos anos, a Anvisa tem reconhecido a importância e os benefícios dos fitoterápicos, o que certamente deve impulsionar o segmento e favorecer os investimentos”, adiciona a diretora de Novos Negócios da Brasterápica, Adriana Schulz. “Somado a isso, a vigilância relativa à qualidade dos produtos também deve se estreitar, beneficiando o consumidor e o mercado como um todo.”

Flora nacional

Outro ponto importante para que o mercado de fitoterápicos deslanche no País está ligado ao aproveitamento dos nossos recursos naturais. Apesar de contar com uma biodiversidade genética espantosa – apenas em plantas superiores, possuímos cerca de 60 mil espécies, correspondente a aproximadamente 22% do total aproximado de 250 mil existentes em todo o planeta, sendo mais de 7% delas endêmicas –, o Brasil usa pouco deste potencial. A maioria dos extratos vegetais que originam os fitoterápicos brasileiros ainda é proveniente de patentes da Europa e da Ásia.

Existem milhares de sais medicamentosos, dos quais, em torno de 60% são de origem natural, moléculas naturais modificadas (semissintéticos) e compostos inspirados em moléculas naturais. Se a biodiversidade brasileira abrange 20% do total mundial, ao menos 12% dos medicamentos produzidos no planeta têm origem ou são inspirados em moléculas encontradas na flora brasileira.

Mas oficialmente o País não participa dessa conta. A dificuldade de oferta contínua de matéria-prima de qualidade no País, com escala e preços competitivos, leva à importação de insumos para fitoterápicos. Mais de 80% dos medicamentos vendidos no Brasil são de fora. Boa parte disso ocorre pela legislação restritiva e, principalmente, pela burocracia existente no País.

“Antes a biopirataria não era combatida como se devia, permitindo a ocorrência de situações como a da pilocarpina (substância oriunda da planta brasileira jaborandi, utilizada mundialmente no tratamento do glaucoma, que tem patente alemã) ou a da espinheira santa, que foi estudada aqui e patenteada no Japão”, afirma Tabach. 

Com a finalidade de coibir esse tipo de situação, o governo decretou, em 2001, a Medida Provisória 2.186-16/01, determinando que o acesso ao conhecimento tradicional associado e ao patrimônio genético existente no País, bem como a sua remessa para o exterior somente sejam efetivados mediante autorização da União, e instituiu como autoridade competente para esse fim o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN).
Mas a Medida Provisória (MP) acabou criando dispositivos que causam empecilhos à realização de pesquisa no País. Desde a dificuldade de interpretação do conceito de “acesso e remessa de amostra de componente do patrimônio genético”, passando pela necessidade de apresentar a anuência prévia do titular da área e de indicar antecipadamente os locais de coleta como requisitos à obtenção de autorização de acesso, chegando à obrigação de depósito da subamostra de componente do patrimônio genético em instituição credenciada.

Devido aos impasses gerados pela MP, muitos pesquisadores não conseguem autorização do CGEN para acesso e coleta de amostras de nossa biodiversidade. Pelas regras atuais, é necessário obter autorização específica para acessar conhecimento tradicional ou componente do patrimônio genético para as finalidades de pesquisa científica, bioprospecção e desenvolvimento tecnológico.

Pessoas físicas, pesquisadores sem vínculo institucional, por exemplo, não podem pleitear autorizações. Isso também é válido para instituições estrangeiras, as quais necessitam associar-se a entidades nacionais de pesquisa e desenvolvimento para participar de pesquisas que envolvam acesso.

“Entre 1990 e o começo da década seguinte, houve grande avanço na pesquisa de fitoterápicos, com interesse crescente da indústria. Depois, com as dificuldades de acesso ao patrimônio genético brasileiro, veio o retrocesso”, observa o professor de Farmacologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e diretor do Centro de Farmacologia Pré-Clínica do Sapiens Parque, João Batista Calixto. “A lei desestimulou a indústria e a inovação. É preciso uma nova legislação, de forma a facilitar as pesquisas e atrair as indústrias. Sem essa parceria com a iniciativa privada, o setor não avança”, esclarece, lembrando que não faltam pesquisas de qualidade no País. “Pesquisamos muito, existem estudos brilhantes, mas eles não geram patentes, pois não saem da academia.”

Processos retrógrados

É preciso vencer também a burocracia, um mal que atinge quase todos os setores no País. A lentidão no processo de análise e concessão de patentes é um exemplo evidente. Segundo o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), em 2013, foram realizados 33.989 depósitos de pedidos de patentes, mas somente 3.326 foram concedidas.

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A distância entre a geração de conhecimento e sua transformação em produtos de valor para a sociedade (inovação) contribui para os baixos índices de competitividade no País, destaca a Associação Brasileira das Empresas do Setor Fitoterápico, Suplemento Alimentar e de Promoção da Saúde (Abifisa). Especialistas pregam que é necessário um pouco de desregulamentação para acelerar o processo. A proteção tem de ser natural, não bloquear tudo. Dá para proteger a biodiversidade, explorando com cuidado e garantindo os royalties para o Brasil.

“No último ano, houve um ligeiro avanço no que diz respeito à legislação e à burocracia, com uma pequena flexibilização em relação às exigências para se trabalhar com a biodiversidade brasileira”, adiciona Tabach. “Mas esses fatores ainda permanecem como um entrave para a pesquisa e produção de fitoterápicos no Brasil.”

Denise é mais cética. “Não acho que houve avanços de um ano para cá. Na melhor das hipóteses, o cenário continua o mesmo, ou seja, quem realmente faz pesquisa com a biodiversidade brasileira são as multinacionais. Existe um confronto entre um Hemisfério Norte rico em tecnologia e pobre em recursos genéticos, em oposição ao Sul pobre em tecnologia, mas riquíssimo em diversidade biológica. Estima-se que um gene potencialmente útil originado da biodiversidade do Hemisfério Sul pode representar negócios de US$ 1 bilhão no Norte, e que o germoplasma vegetal do Sul contribua com valores estimados em US$ 66 bilhões por ano, somente na economia dos Estados Unidos”, diz a pesquisadora.

A boa notícia pode estar na aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 7735/2014 em tramitação no Congresso Nacional. A proposta pretende simplificar a dinâmica de autorização, utilização do conhecimento tradicional associado e repartição de benefícios, temas que são um dos principais gargalos da indústria farmacêutica.

“Essa simplificação da regulamentação junto ao CGEN trará um ganho de tempo para o início das pesquisas. Outro ponto importante do PL é o acesso ao conhecimento tradicional associado, que vem sendo motivo de discussão e incerteza para as empresas, pois, até o momento, o valor pago às comunidades deve ser decidido antes do início da pesquisa, ou seja, as indústrias se comprometem a repartir os benefícios sem mesmo saber se conseguirão desenvolver algum produto a partir da amostra. Com a aprovação do novo projeto, os critérios para repartição de benefícios ficarão mais claros e adequados à realidade das atividades de pesquisa e desenvolvimento de produtos oriundos da biodiversidade brasileira”, prevê Denise.

“É preciso que se aprove uma nova lei logo, de forma a atrair o interesse da indústria e permitir ao setor de fitoterápicos deslanchar em sintonia com o potencial do mercado nacional”, completa Calixto.
Algumas indústrias de capital nacional têm investido em pesquisas em parcerias com universidades e centros de pesquisa no intuito de desenvolver novos fitomedicamentos e fitoterápicos a partir da biodiversidade nacional, revela Cardoso, do ICTQ.

Como exemplo, ele cita o Acheflan, do laboratório Aché, um anti-inflamatório tópico elaborado a partir das folhas de erva-baleeira (Cordia verbenaceae DC.), e o Kios, do Hebron, desenvolvido das cascas da aroeira (Schinus terebinthifolius Raddi), indicado para o tratamento sintomático da gastrite leve a moderada. “A indústria de fitoterápicos, incluindo a pesquisa de fitomedicamentos, pode ser vista como a grande alternativa para o crescimento e a modernização da indústria farmacêutica brasileira, que ainda é muito dependente de tecnologias e processos oriundos de empresas internacionais aqui instaladas”, completa Cardoso.

Fito 2015

Especial Fito 2015

Essa matéria faz parte do Especial Fito 2015.

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